A vida como retorno do recalcado

O post abaixo contém spoilers dos dois eps da série.

Algumas ideias me vieram à cabeça enquanto pensava sobre a série The last of us. Essas ideias queriam juntar cenas das pessoas correndo desesperadas de um apocalipse zumbi fúngico com o livro Exterminate all the brutes de Sven Lindqvist. Esse livro eu comprei depois de meses esperando um dinheiro sobrar, e nas primeiras páginas senti uma excitação que me lembrou meus primeiros livros. Nossa, sentia um frio na barriga como se eu estivesse diante de um pequeno tesouro, algo precioso que estava em minhas mãos; palavras e desenhos com cheiro de folhas novas, tudo isso estava brotando de meus olhos enquanto começava a ler este livro. 

A ideia é a seguinte:

E se a vida que brotava da goela dos infectados fosse o retorno de uma vida recalcada pela civilização ocidental? 

Freud enuncia essa antinomia(uma contradição profunda) em seu mal estar na civilização:

"Do lado da cultura, a tendência a restringir a vida sexual não é menos clara do que a de ampliar o âmbito da cultura. A primeira fase cultural, a do totemismo, já traz consigo a proibição da escolha incestuosa de objeto, talvez a mais incisiva mutilação que a vida amorosa humana experimentou no curso do tempo. Por meio de tabus, leis e costumes, são produzidas mais restrições, que atingem tanto homens como as mulheres... Já sabemos que nisso a cultura segue a coação da necessidade econômica, pois tem que subtrair à sexualidade um elevado montante da energia psíquica que despende. Nisso, a cultura se comporta, em relação a sexualidade, como uma tribo ou uma camada da população que submeteu a outra à sua exploração. O medo de uma revolta dos oprimidos leva a rigorosas medidas de precaução." O mal estar na civilização pg.68

Vou aproveitar o ensejo para colocar outra citação do Freud, uma nota de rodapé que é uma das minhas favoritas:

"É como se o homem primitivo estivesse habituado, ao se deparar com fogo, a satisfazer nele um prazer infantil, apagando-o com um jato de urina. Segundo lendas que possuímos, não há dúvida quanto a concepção fálica original da flama que se ergue para o alto em labareda. Apagar o fogo urinando - algo a que também recorrem depois os gigantes em Gulliver, em Liliput, e Gargântua de Rabelais - era então como que um ato sexual com um homem, uma fruição da potência masculina numa disputa homossexual. Quem primeiro renunciou a este prazer, poupando o fogo, pôde levá-lo consigo e colocá-lo a seu serviço. Ao amortecer o fogo de sua própria excitação sexual, havia domado a força natural do fogo." 

Lembro-me de uma aula onde se perguntou o que aconteceria caso perdêssemos nosso querido e sádico super eu, uma colega começou: seria um caos, todo mundo transando no meio da rua..rs Aaaa essa crença tão arraigada de que a vida deixada às próprias rédeas se tornará o território do incestuoso não é algo inerentemente psicanalítico. 

Georges Minois tem uma obra deliciosa destrinchando a história dessa crença chamada natureza pecaminosa, algo que se relaciona de forma medular com a historia da antinomia cultura x natureza. Citando Bossuet, vejamos o fundo dessa crença:

"A revolta da carne, ele explica, é a prova da queda original, a origem de todos os nossos males. Como, de outra forma, poderíamos explicar esse vergonhoso desejo sexual? ... e dado que a massa da qual fosses formados já está infectada em sua fonte, o pecado se liga e se incorpora à vossa natureza. Vem daí essa profunda ignorância, vem daí as quedas contínuas, vem daí essas cupidezes desenfreadas que constituem toda a perturbação e todas as tempestades da vida humana." As origens do mal

Seria o cordyceps a versão 2.0 da natureza pecaminosa contaminante? Seria ele um representante da vida que insiste em retornar do cercadinho civilizatório que o colocamos quando construímos nossa gloriosa civilização ocidental, essa civilização tão foda que o Freud considerou como a única e do qual deduziu que todas as civilizações seguem a mesma antinomia?     

Diante de tão astuto inimigo, precisamos nos precaver com muralhas sanitárias, bombardeios, tiros, armas e mais armas, controle paranoico, exames automáticos, estado de sítio. Antigamente a gente usava a bíblia e catecismo. 

"Há séculos o cristianismo, obstinando-se sobre o homem para melhor glorificar a Deus, persuadindo o pecador de sua incapacidade de fazer o bem, difundiu a ideia de uma situação irremediável, que apenas alguns movimentos milenaristas contestavam, mas eram rapidamente reprimidos. As igrejas, para manter seu controle sobre as sociedades, precisam conservar a convicção de que a humanidade só pode encontrar sua salvação num além, do qual detém as chaves."  As origens do mal

A "contradição incontornável" entre nossos instintos e a dourada civilização é uma reserva de mercado. Nossa civilização criou um problema para o qual promete a salvação, claro que com algumas ressalvas. Vamos desenvolver uns outros sintomas não tão glamorosos, tipo ter que fazer uns genocídios aqui e acolá, políticas de austeridade quando o calo aperta, conduzir o populacho com redeas curtas, senão... No século 19 a manutenção desse cordão sanitário sai das mãos da igreja e vai para a política(polícia)e para ciência.

"Para o próprio Darwin, a eliminação dos tasmanianos é a ilustração desse processo. Esses povos primitivos não são, de modo algum, degenerados, mas, sim, ramos menos adaptados que os europeus na luta pela sobrevivência, Para alguns, como Herbert Spencer(1820-1903), sendo a evolução e a seleção um processo natural, a moral natural justifica o domínio dos mais fortes... O conceito de raça se reforça, em detrimento da ideia de unidade da espécie humana, e a ciência parece então lhe dar razão: 'A ênfase sobre a raça se torna predominante, em acordo coma fé no progresso científico, e não em oposição a ele'. (...)

Para Paul de Broca(1824-1880), fundador da Sociedade de Antropologia de Paris em 1859, ano de Origem das espécies, 'o cérebro é maior nos adultos maduros que nos velhos, maior nos homens que nas mulheres, maior nos homens eminentes que nos medíocres, maior nas raças superiores que nas raças inferiores... Arthur de Gobineau(1853-1855) insiste na degenerescência da humanidade, cuja responsabilidade ele atribui à mistura das raças, ideia retomada e desenvolvida por Houston Stewart Chamberlain em 1899"*  As origens do mal pg. 284

Dessa galera vamos percebendo que existe uma tendência a usar a teoria das raças para animalizar os povos "primitivos" e a colocá-los numa categoria abaixo do humano europeu branco, algo que justificaria sua eventual exterminação. Coisa que a série reproduz pelo contágio do cordyceps. Já no início do primeiro episódio uma criança se encontra contaminada e é rapidamente executada. Pilhas de corpos são queimados num dia ensolarado como uma atividade corriqueira. Diante do caos, se instala um governo marcial, toques de recolher e penas de morte, fez sentido pra você? Essa é uma repetição que estamos vivendo em escalas diferentes desde o neocolonialismo.

"A herança do pecado original serve então para justificar os poderes absolutos. A natureza humana é corrompida, repetem os teóricos do absolutismo: para organizar uma vida coletiva estável entre homens essencialmente maus, são necessários uma estrita hierarquia social e um governo autoritário que não tolere nenhuma crítica. No plano econômico e social, a depravação universal exige a propriedade privada, agente de responsabilização, de seleção dos eleitos, e prova salutar diante da atração pelos bens materiais."  As origens do mal pg. 171

Esse pacote governo tecnocrático militar, uniformes pretos, rondas e leis severas, tudo se justifica diante da invasão fúngica que ameaça a vida ocidental pacata dos subúrbios americanos. Pobres americanos. No segundo episódio, os autores apresentam a fonte da contaminação como sendo um país de 3º mundo, apinhado de gente e pobreza.. um ambiente propício pra essa coisa proliferar...a pobreza? Não, um fungo que transforma as pessoas em zumbis! Aaa ta. Uma cientista é convidada para examinar o corpo de uma vítima, uma mulher mordida no tornozelo. Quando ela abre a boca do corpo estirado na mesa de metal, surgem os tentáculos do fungo temido e ela se retira apavorada. Isso me lembra do famoso episódio da injeção de Irma¹ relatado na Interpretação dos Sonhos, ali Freud se depara com a mesma cena de exame da boca e contempla o insondável meandro do feminino como esse desconhecido opaco, impermeável à razão instrumental científica. 

Um general, aparentemente mais preocupado do que nosso saudoso Pazuelo, questiona a cientista sobre como proceder, como desenvolver uma vacina? A cientista trêmula diz: "bombardeie! Estudo isso a minha inteira, não existe vacina". Essa situação extrema, final, que demanda força bruta e extermínio, me parece um fetiche tecnocrático típico de nossa civilização fascinada por resolver as coisas matando. No século 19 isso foi aplicado aos povos coloniais, criou-se uma justificativa especializada, teorias raciais e civilizatórias que permitissem a legitimação do extermínio de forma que ao mata-las mais rapidamente, os europeus estavam lhes prestando um favor². 

"Ninguém repara que durante a infância de Hitler, o maior elemento da visão europeia sobre a humanidade era a convicção em 'raças inferiores' que eram por natureza condenadas a extinção: a verdadeira compaixão das raças superiores consistiria em ajudá-las nesse caminho." Exterminate all the Brutes

Pense meu querido leitor que o pavor sentido diante da contaminação fúngica mortífera é um paralelo muito adequado para que você consiga imaginar como o alemão do entre guerras observava o crescimento de imigrantes estranhos no seio de sua sagrada linhagem germânica. Para que prolongar esse sofrimento e ainda colocar sua herança genética em risco com prováveis miscigenações quando podemos empregar umas bombas para dar um empurrãozinho na evolução? Todo o pavor funesto alimentado pela propaganda nazista foi embasado por autores acadêmicos que pesquisavam antropologia, etnologia, filologia, construindo um cenário tenebroso para o cidadão classe média da época. Vendo as cenas de contaminação da série eu já estava pedindo bomba nos infectados, como pensaria o pessoal lá nos rincões de uma Alemanha recém nascida?

Outro paralelo possível seria ver essa civilização europeia como uma versão cultural do cordyceps. Uma cultura que invade hospedeiros do 3º mundo e os coloniza de forma a faze-los defenderem os seus interesses, como os zumbis fazem na serie. Isso explicaria porque os reaças brasileiros estariam tão parecidos com os red necks americanos que invadiram o capitólio.  

Não joguei o jogo, mas imagino que a infecção será percebida como uma oportunidade de domínio, e que dessa forma a cura nunca será interessante, afinal, apenas o medo é capitalizável. Um dia vamos perceber que a doença nunca existiu, sempre existiu a vida. Talvez nossa civilização ocidental já esteja morta, só não percebemos. Logo, os fungos irão nos decompor, afinal, eles decompõem tudo, porque não poderiam decompor o capitalismo?

   

*Deixo uma citação perturbadora, dentro deste locus maravilhoso que foram as teorias raciais do sec. 19, de Robert J C Young: "O fato brutal, que ainda hoje não foi encarado, é que o racismo moderno foi uma invenção acadêmica"79 - desejo colonial 

¹ Levei-a até a janela e examinei lhe a garganta, tendo dado mostras de resistência, como as mulheres com dentaduras postiças. Pensei comigo mesmo que realmente não havia necessidade de ela fazer aquilo. − Em seguida, abriu a boca como devia e no lado direito descobri uma grande placa branca; em outro lugar, localizei extensas crostas cinza-esbranquiçadas sobre algumas notáveis estruturas crespas que, evidentemente, estavam modeladas nos cornetos do nariz  

² "Como sentimos que será um favor aos cães cujo rabo será cortado, quando alguém o corta lentamente centímetro por centímetro, tão pouco é humano artificialmente prolongar os sofrimentos de morte de selvagens na iminência da extinção...O verdadeiro filantropo, se ele compreendeu a lei natural da evolução antropológica, não pode evitar desejar uma aceleração dessa ultima convulsão, e trabalhar para esse fim.  Eduard von Hartmann

                                                                                                                                                                                                   

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Noé e a metáfora da vida

O último teste - histórias que nos ajudam a encontrar o caminho

O retorno da alegria