Ouroboros

Nighthawks - Edward Hopper

"Sentar-se no inferno e aí assar é o que produz a pedra filosofal; como diz o autor, o fogo é extinto com sua própria medida interior. A paixão tem sua própria medida interior; uma libido caótica é algo que não existe, pois sabemos que o inconsciente, como natureza pura, tem seu equilíbrio interior. A falta de equilíbrio provém da infantilidade da atitude consciente. Se apenas seguirmos nossas paixões, de acordo com suas próprias indicações, elas nunca irão muito longe, elas conduzirão sempre à própria derrota." Marie-Louise Von Franz

Antônio é um rapaz com seus vinte e cinco anos, trabalha de chapeiro em um bar na esquina da avenida Ibirapuera. Moreno, com a barba rala, vestindo um uniforme preto, manobra as espátulas com uma velocidade modulada pela experiência de anos, um ritmo de barulhos gostosos... dá até vontade de pedir que ele fique ali limpando a chapa só pra eu fazer uma sessão de relaxamento. 

O espaço de trabalho é enxuto, um T de poucos metros onde se distribuem a pia, cafeteira de coador e estufa de salgados, caixinhas de metal com frutas, caixinhas com contra filés, caixinhas com bistecas. "Já começou a fazer o x-egg do moço?" pergunta o colega, ao que ele responde sem olhar: "tá ali na chapa", porém não estava... só que em fração de segundos o ovo e o hambúrguer apareceram milagrosamente no canto direito da chapa. Mágica? A destreza de Antônio permitia que ele dissesse que algo estava na chapa sem estar lá, sem mentir, porque, na verdade, os movimentos de lançar coisas na placa de metal quente era um momento de relatividade, ele conseguia driblar o tempo da conversa com os movimentos do braço. 

Anos dentro daquele T preparando bifes, lanches, omeletes, filés, tinham impresso uma sequencia de movimentos automáticos nas camadas mais profundas de seu cérebro, ao ponto dele não perceber a passagem dos dias, meses e luas. A rotina torna pequenos movimentos hesitantes em sequencias, pedidos em filas mentais, tempos de cozimento, quando virar o bife, limpar, guardar utensílios, dentro de poucos anos, Antônio cultivou uma sequencia interminável de atividades mecânicas orquestradas com uma beleza trivial, o x-egg era simétrico, cortado no prato e entregue como uma pequena oferenda ao cliente. "Mais alguma coisa? Coca? Gelo e limão?" 

A rotina opera milagres. No caso de Antônio, o transformou em um destro chapeiro de padaria.

Um dia, voltando pra casa no meio da noite, cansado, caminhava sozinho pelas ruas mal iluminadas de seu bairro, quando uma luz intensa o encontrou vinda do alto. Ele coloca a mão para bloquear o feixe de luz, tentando distinguir o que estava acontecendo, quando ele começa a flutuar no ar. Nesse momento sua voz desaparece e o caminho em direção à luz se passa como uma paralisia do sono, uma imobilidade assustadora. 

Antônio desaparece tendo como testemunha apenas um gatinho sentado tranquilamente nos tijolos baianos de um muro mal rebocado. 

Quando Antonio volta a si, estava em uma sala pequena, bem iluminada e havia uma figura humana feminina sentada em um sofá. Deitado no chão, ele começa a se levantar ainda aturdido, sentindo náuseas. 

-Isso aqui é um sequestro? Eu não tenho dinheiro não moça! Vocês pegaram o cara errado!

-Antônio, você é uma pessoa de sorte. Você foi escolhido para nosso programa de capacitação.

-Eu!? Tipo aquele jovem aprendiz? 

- No passado tentamos selecionar os exemplares humanos mais privilegiados por riquezas e posições de poder, infelizmente eles não conseguiam sobreviver a revelação, quer dizer, ao programa de capacitação.

- O que você quer fazer comigo moça? Minha nossa senhora, eu tô fodido. Isso aqui tá muito estranho, tá parecendo aquelas pegadinha do Luciano Huck... só pode ser isso. 

Antônio procura câmeras escondidas pela sala, e quando não encontra nada, começa a sentir solavancos em seu peito, olha ao redor para procurar uma rota de fuga... pensa que talvez queiram fazer uma maldade com ele, lembra que nos filmes essa coisa de mulher bonita propondo coisas nunca acaba bem para caras que não tinham onde cair morto. Bateu um frio na espinha, aquilo ia dar merda, ele ia virar bucha de canhão para algum bacana, tava tentando lembrar se tinha deixado de pagar alguém, algum agiota. 

Nesse momento, outra mulher entra na sala e pede que o acompanhe. Parecia que tudo na decoração era suave, apaziguador, coisa que deixava nosso chapeiro ainda mais desconfiado.. aquilo parecia um lugar de gente com dinheiro, parecia um decorado de condomínio, tudo impecavelmente organizado. 

Essa nova mulher tinha um aspecto oriental, cabelos longos, shorts jeans, camiseta preta e tênis vans. A mulher sentada no sofá estava com um vestido longo vermelho, maquiagem carregada e cabelos bem arrumados, elas pareciam ter sido pinçadas de um catálogo aleatoriamente e juntadas para receber um pobre capturado humano. 

-Antônio certo? Muito prazer eu sou Archie! (se curva e aperta a sua mão)

-Prazer, cêis tão pensando em fazer o que comigo? Fala ou senão eu vou engrossar aqui.

- Senhor Antônio, você já não está mais em sua atmosfera natal. Se não cooperar, vamos mandar um e-mail para seu chefe dizendo que você pediu demissão.(os alienígenas descobriram depois de algumas entrevistas com nativos que os humanos consideram o emprego a coisa mais importante da existência, e que barganhas geralmente funcionam bem.) 

Neste momento uma janela se abre na parede opaca e nosso chapeiro tem sua face iluminada por um sol espalhado pela curvatura do globo terrestre. Pela primeira vez na história um homem trajando o uniforme negro com o logo da lanchonete e restaurante Nova Império da Jandira pode contemplar o universo sem estar alienado pela atmosfera humana.   

Ainda aturdido pela visão, Antônio é conduzido a uma outra sala, onde encontra jardins e plantas ornamentais espalhadas por todas as paredes. Um homem o aguarda no centro, muito animado, se levanta e se dirige aos recém chegados.

- Seja bem vindo Sr. Antônio. Como você está se sentindo? Pronto para sua nova capacitação?

- Oia eu não faço ideia do que voceis quer de mim, só não deixa nada acontecer pra minha família. 

- Não precisa se preocupar, sua família provavelmente nem notará sua falta, pois o seu treinamento será conduzido em um estado diferenciado de consciência, logo, o que você perceberá como anos na verdade serão apenas alguns minutos para que estiver aqui fora.

- O que vai acontecer comigo? 

- Vamos colocar o Sr. em uma câmara ouroborica, uma invenção desenvolvida com alguns colegas humanos, feita para adequar e redirecionar seu circuito emocional para uma definição mais equilibrada, o que seus místicos chamam de iluminação...

- Que parada é essa de iluminação!? Ceis tão querendo me foder

- Tá, uma coisa bem bacana pro seu currículo, tipo aprender inglês em um dia? Que tal?

- Como é esse negócio? 

- Tipo aquele filme Avatar, você assistiu? 

- Sim, acabei de ver no cinema o 3d. Vocês são tipo aqueles et, navi, só que vocês não são azuis...

- Isso, exatamente. Temos aqui ao nosso lado uma câmara semelhante ao que o protagonista utilizava para se tornar um navi. Deite aqui e vamos demonstrar.

Desconfiado, Antônio olha ao redor e enxerga apenas Archie sentada em uma cadeira, uma brisa suave pairava e abanava as flores das dezenas de vasos. Algumas pessoas circulam cuidando das plantas, tudo parecia muito calmo e ninguém parecia despertar suas suspeitas, um som suave ambiente estava tocando. Tudo parecia uma tarde descontraída de verão na laje, só faltava os amigos. O celular estava sem rede, não tinha como pedir ajuda. 

-Se eu fizer esse treco, ceis vão me devolver pra Terra?

- Sim, essa é a proposta. Acreditamos que os humanos precisam despertar suas verdadeiras potencialidades, infelizmente, sua condição atual é bem complicada. Mas você é forte, vai conseguir concluir o treinamento. 

Neste momento ele se deita na câmara ouroborica. O homem fecha a porta sobre ele lentamente. Olha para seu rosto através de uma janelinha da qual se pode divisar seus olhos e faz um joinha sorrindo um sorriso curioso. Sua visão começa a turvar, sente uma tensão percorrer sua espinha. Sente um frio atravessar todo o corpo e seu nervosismo começa a dar lugar a um relaxamento profundo, sonolento.

Antônio desperta em uma praia deserta. Suas roupas são de um naufrago de outros tempos, muito antigas. Ele se levanta e começa a explorar os arredores. Ao longe, consegue ouvir uma tribo cantando ao redor de uma fogueira, dançando animadamente de mãos dadas. Vendo esse ritual bacana, Antônio se animou a acenar e dizer um oi. Em poucos segundos os índios interrompem a dança e correm para suas ocas, logo retornando armados e assustados. Antônio sai correndo e inicia-se uma longa perseguição pela orla da praia. Já sem fôlego, ele acaba sendo alcançado por três índios e uma briga se inicia. Depois de ser imobilizado ele começa a gritar:

- Pára porra! Tô perdido aqui nessa porra, vocês me entendem?

Um índio, parecido com um xamã se aproxima com um punhal e fica em sua frente. 

- Pela mor de deus, não faz isso! Eu tenho filho, família, nunca fiz nada de errado...

O xamã crava o punhal na boca do estomago de Antônio enquanto olha em seus olhos com um semblante de dor, parecia que de alguma forma ele entendia o sofrimento de nosso chapeiro. Uma dor aguda atravessa seu tórax, sente o sangue escorrer quente por sua pele, manchando a roupa molha de suor. O xamã tira o punhal e pede aos outros que o deixem no chão. Antônio começa a chorar, sente que a morte se aproxima. Começa a cuspir sangue, sente o corpo gelar, começa a se arrastar em direção a praia. Os índios se retiram e o deixam sangrar até morrer. 

Quando o limiar da inconsciência passa, Antônio acorda novamente na praia. Só que desta vez os índios já estão lá armados aguardando pelo seu retorno. Nosso chapeiro sai correndo para a floresta, buscando algo para se proteger, um abrigo, algo que possa usar como arma para se defender, porém sempre é alcançado pelos três índios, derruba um com uma pedrada, luta e é imobilizado. O xamã se aproxima com o punhal... Antônio repete esse ritual de sacrifício exatas 48 vezes, tenta jogar areia nos olhos deles, nadar, dialogar, implorar, se esconder, até que chega uma hora que ele pensa... essa merda nunca vai acabar! Puta queo pariu... eu vou é pedir pra esse veio me matar logo! Quando acorda na praia pela quadragésima nona vez, Antônio vai na direção dos índios já de braços abertos:

-Manda ver véio! Levanta a camiseta e aponta pro coração... vai com tudo! Cadê o veio safado que já me matou trocentas vezes??  Pó matá que eu já tô de saco cheio.

Os índios se entreolham e o velho xamã se aproxima com um colar de flores.  

- Já estávamos cansados de te matar. Mas tudo tem seu tempo, não é mesmo? O medo da morte é o primeiro obstáculo para o conhecimento da verdade, enquanto você permanecer no medo, não encontrará o caminho da vida. Aqui começa seu aprendizado. 

O xamã se apresenta e coloca o colar em Antônio. Ele é convidado para a tribo e começa a participar da rotina, das cerimônias e começa a dançar ao redor da fogueira, como ele havia inicialmente testemunhado da primeira vez que apareceu na praia. Antônio começa a perceber que existe algo neste mundo estranho que lhe parece com o roteiro exíguo de outros tempos. Um aprendizado rotineiro, de melhorias constantes, pequenos movimentos que se articulam eliminando outros desnecessários. 

Uma índia muito bela se aproxima de Antônio e o convida para uma caminhada na praia. Antônio já havia reparado nela durante as cerimonias em torno da fogueira. Entre um olhar e outro, sentia que seu coração batia mais forte quando ela estava presente. Quando ela se aproxima, ele fica surpreso - nunca tinha sido dessa maneira. Geralmente era uma coisa que ele precisava lutar, xavecar, beber e tomar coragem para conseguir algumas bitocas. Ao final da caminhada noturna pela linha do mar, Antônio e Nina se beijam, se abraçam e percebem seus corações baterem como os tambores cerimoniais que acompanham os rituais. 

No dia seguinte, procura Nina pelos arredores das ocas e a vê com um outro índio, os dois se beijavam. Ele fica puto, coração quase sai pela boca. Ele vai andar pela praia pra espairecer. "Isso aqui só pode ser uma artimanha da programação indígena!" Mas ficar pensando não ajuda em nada, a dor ainda verga seu peito como as punhaladas do velho xamã. "Como pode eu ser tão idiota!? Mano a mina só queria curtir, vou tentar ficar com outras índias e esquecer da Nina."

Assim se passam dias, semanas, anos. Antônio ficou, beijou, transou com inúmeras índias. A saudade de Nina se aplacava, amansava, porém era ela aparecer no ritual da fogueira que seu coração dava um solavanco. Quando seus olhares se cruzavam ele parecia parar no tempo. "Como ela é linda, meu deus!" Antônio já tinha tentado falar com ela, pediu uma ajuda ao xamã, aos colegas de suplício, um dia já sem muita paciência, foi em direção dela e a arrastou para uma conversa. 

- Você não sente o mesmo que eu? Como pode você ter vindo e me beijado, e agora não quer nada comigo?

- Você não entende, nunca entenderá. Meu interesse por você passou, não sinto mais nada por você. 

Antônio se desespera e a arrasta pela floresta. Ela grita pedindo ajuda, mas ninguém ouve. Ele a esbofeteia, joga no chão, enquanto ela suplica para que ele pare. Mas nada parece conseguir parar o turbilhão de ódio que percorria as veias de Antônio. Ele tira a camiseta e enfia em sua boca para que conseguisse que ela se calasse. Depois a violenta na escuridão da mata.

No dia seguinte, Nina desaparece. Após horas de busca é encontrada morta em um desfiladeiro a beira mar. Seu corpo boiava entre as pedras, inerte como as algas e pedaços de madeira. Familiares jogam flores, lamentam e choram na beira do abismo. Antônio procura o xamã, transtornado pela culpa. 

- Como fazemos para consertar isso? Se você me matar eu posso voltar do zero e mudar essa tragédia?

- Não, essa não é a mesma lição. Nós não podemos consertar isso, você precisa lidar com as consequências.

Antônio respira fundo e se retira. Foge para a floresta e se isola. Tenta viver sozinho, mas se encontra consumido pelas memórias de Nina e pela culpa catastrófica. Pensa em se matar, acabar com esse sofrimento. Efetivamente se mata, mas a cada tentativa, seu corpo retorna para a mesma cena como se nada tivesse acontecido. Definha de fome, se enforca, se joga de penhascos, briga com tigres, se afoga. Depois de inúmeros suicídios ele percebe que é inútil fugir. Retorna para a tribo envergonhado, confessa seu crime diante de todos. 

- Eu estou aqui para dizer aos pais de familiares de Nina que eu fiz maldade com ela. Não aguentei ela me dar um fora e forcei a ficar comigo de qualquer jeito, depois ela se matou pulando do penhasco. É tudo culpa minha e eu aceito o que vocês acharem melhor fazer comigo. Por favor, façam justiça. Eu ainda amo a Nina, e faria qualquer coisa para que ela estar aqui de novo com vocês. Me desculpa!   

Antônio se ajoelha e chora copiosamente.

O xamã se aproxima e o abraça - você aprendeu mais uma lição aqui. 

- Nina não voltará? O que eu faço para consertar isso homem? Deve ter um jeito...

- Não, ela não voltará.

- Meu deus! Eu não vou conseguir seguir com isso. Eu estrupei e matei a pessoa que eu mais amava nesse mundo! Isso é imperdoável. Como vocês toleram isso? Me matem por favor!

Todos começam a se retirar, os familiares de Nina se aproximam e perdoam Antônio. O abraçam e dizem para ele se apaziguar. Isso parece ferir seu coração mais dolorosamente que uma sentença de morte, se pudesse iria implorar por uma punição severíssima. Mas eles o perdoam.

Depois destes acontecimentos, Antônio se muda para outra praia e decide viver sozinho. Sempre quando a saudade de Nina parecia insuportável, ele se dirigia para o fatídico penhasco e lançava flores em sua memória, rezava, conversava com os parentes dela pedindo perdão, tentando reparar, ajudar, em qualquer coisa que fosse possível. 

Alguns anos depois, Antônio é convidado pelo xamã para uma festa, depois de várias negativas decidiu participar. Estava entretido construindo embarcações para ajudar com a pesca, a antiga barba rala agora estava bem mais espeça, a pele estava queimada e algumas entradas de calvície começavam a se insinuar em sua testa. Caminhando pelo final da tarde pode divisar o penhasco, parece cumprimentar com a alma a alma de Nina. 

Durante as festividades, estava cabisbaixo em um canto da clareira central tomando uma beberagem produzida pelos colegas do xamã. Uma bela índia se aproxima e lhe chama pra dançar. Ele recusa, sorri e diz que está velho pra isso. Ela insiste. Ele já meio inebriado, aceita e se solta depois de anos de reclusão em sua choupana isolada. O roçar das peles, o macio dos seios comprimidos entre seu peito o fazer reavivar antigos amores. Seu coração volta a reagir, e ele olha a bela índia nos olhos - como você chama?

- Aurora. 

- Aurora, muito obrigado pela dança. Você fez meu coração reviver. 

- Você é um ótimo dançarino, dance mais uma comigo?

A partir daqui, nosso chapeiro se deixa perder nesse cenário paradisíaco. No meio da noite, ela o arrasta para um canto e o beija. Antônio mergulha nos braços de Aurora e quando a coisa se encaminha para algo mais intenso, ele se retira abruptamente, pedindo desculpas. 

Dias depois estava Antônio derrubando umas árvores para construir um anexo a sua choupana, quando ouve gritos. Alguns índios estavam sendo atacados por gorilas em um ribeirão, entraram inadvertidamente em um território de um grupo mais agressivo. Antônio se lança entre os animais e os entretém, chama a atenção para si e se joga no meio do ribeirão rindo. Os índios ficam chocados com a audácia do forasteiro, entre eles estava Aurora. 

Desse dia em diante, ela o visita todos os dias. Mas Antônio se mostra irredutível, "não mereço o amor de ninguém." Diz para si mesmo. Um dia Aurora lhe traz bolos, porém uma chuva torrencial despencou no meio do caminho, deixando a coitada ensopada. Antônio fica sem graça de mandá-la embora, e a convida para se abrigar. 

- Vem cá se esquentar. 

A noite cai e os dois passam a madrugada curtindo uma pausa na penitência eterna de Antônio. Antes do nascer do sol, Antônio desperta com um sobressalto de angústia. Ouvindo os grilos ao fundo, sente o cheiro de Aurora, fica olhando seus cabelos espalhados pelo forrado de sapé improvisado, o contorno de seu quadril deitado em sua frente, respirando profundamente.  

- Aurora, cê tá acordada?

- agora tô, por que?

- Cê tá fazendo algo muito errado ficando comigo. Eu não sou uma boa pessoa.

- Você tá doido, o que você tá falando? 

- Eu fiz uma maldade terrível no passado, não mereço ficar com uma moça bonita que nem você, você merece coisa melhor. 

- Olha Antônio, eu sou adulta pra decidir o que eu faço da minha vida. Se eu quero estar aqui eu vou ficar aqui sim. 

- Mas eu vou gostar de você e vou fazer besteira. Eu sou uma pessoa nervosa, sou perigoso. Tu volta pra sua tribo e arruma um índio legal, tem tanto rapaz bacana lá... faz isso, pela mor de deus. 

Parece que a teimosia de Antônio encontrou uma adversária a altura. Para desespero de nosso ilustre quase iluminado chapeiro, seu coração encontra-se novamente apaixonado. A lua cheia no céu lembra sua caminhada anterior com Nina, a orla, o mar e os beijos. "Meu, como pode eu tá apaixonado de novo! Puta merda." 

Outros dias chuvosos acontecem, e Antônio passa a amolecer seu coração para a convidada, deixando ela dormir em sua choupana até nas noites mais estreladas. Passam a conviver, arrumar um jardim, caçar, coletar frutas em alguns cantos desconhecidos. Antônio leva Aurora para alguns pontos turísticos que descobriu arriscando suas vidas infinitas. As vezes se esquecia que seu amor não era imune à morte como ele, e se sobressaltava, gritava, pedia cuidado, "não morra pela mor de deus! Não posso te perder."

Sempre que alguma coisa boa acontecia, Antônio ficava ressabiado. Parecia que sua sina seria viver apenas breves momentos de felicidade. De alguma forma, ele pressentia que não merecia a mesma sorte daqueles índios felizes que dançavam em volta da fogueira em uma praia paradisíaca. 

Claude Monet - 1882

Um dia Aurora chamou Antônio para uma encosta com vista para o mar, queria lhe falar. 

- Antônio, eu queria te dizer uma coisa.

- Você vai embora? Não gosta mais de mim, achou alguém mais legal?

- Eu te amo. 

- Não fala isso pra mim, assim você me mata pra valer. 

- Queria que você soubesse que eu sei a sua história e queria que você pudesse se perdoar, aceitar o meu amor.          

Antônio vira para não chorar na frente de Aurora. 

- Eu também te amo, você tem sido uma coisa maravilhosa na minha vida. Não mereço nem um segundo de vida com você.. Obrigado por isso aqui. 

Antônio recebe um abraço pelo qual esperou a vida inteira. E ali ficaram muito tempo ouvindo as ondas ao fundo, sentindo seus corações batendo forte, parecendo um antigo dialogo entre pulsações e arrebentações. 

No dia seguinte o xamã aparece ao nascer do sol na cabana de Antônio. Ele carrega um colar de flores, e precisa encerrar a última etapa do aprendizado de nosso chapeiro. Antônio, claro, quer sair correndo. Aurora não entende nada, conversa com Antônio pedindo pra ele falar com o xamã, ele não pode ficar lá fora, isso é muito errado. Antônio quer fugir pelos fundos, arrasta Aurora para o quintal. 

- Meu deus, eu vou perder você! Não pode acontecer de novo. 

- Como assim, o xamã não vai fazer nada, ele é um bom homem! 

- Você não entende, isso aqui vai acabar. Eu estou em algo estranho, um aprendizado. Se eu aprender tudo vou retornar para minha tribo sabe? Não queria mais voltar a ser chapeiro! Não queria aprender nada! Se eu não aprender vou ficar aqui pra sempre.. tá ai, vou mandar ele a merda...

- Vai dar tudo certo. Eu te amo... confia nesse amor. 

Antônio percebe que aquilo vai acabar, de um jeito ou de outro... é inevitável. Ele beija Aurora pela ultima vez, a abraça forte, sente um arrepio cortar sua alma de alto a baixo. 

- Eu te amo, saiba disso hein. Não vou te esquecer nunca. 

Antônio se afasta segurando sua mão até se soltar, lentamente, as pontinhas de seus dedos. "Seja o que deus quiser". O xamã aguardava lá fora, com o colar de flores nas mãos. 

- Achei que você não ia sair. Teria que retornar mais tarde. (diz isso com um sorriso no rosto)

- Eu sei que você sempre retorna. Não precisa, eu tô pronto. 

Antônio se curva para receber o colar. O xamã coloca o colar e o abraça. 

- Aqui você aprendeu sua lição. 

Um vento sopra varrendo o vale em que a choupana ficava, parecia que as árvores estavam se despedindo.

Ei! Rapaz acorda! Tá tudo bem!? 

Antônio acorda acudido por um morador de rua, num canto da rua mal iluminada em que ele havia sido abduzido. Um gato se esfrega em suas pernas. 

  

   


   


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