O que é o amor?

Essa é uma pergunta difícil de responder, isso se existir uma resposta. Mas não devemos deixar essa vertigem estancar nossa gostosa reflexão, vamos tentar prosseguir admirando a paisagem, ainda que nosso destino não seja tão amigável e que as respostas sejam escassas, penso que este exercício nos permitirá um contato mais prazeroso com este misterioso deus, o Amor.
Anteriormente, procurei aproximar o que acredito ser o amor de nossos sentimentos mais íntimos e desconhecidos porque acreditava que o amor se manifestava através da revelação do que foi anteriormente suprimido pela ordem vigente. Recordando a batalha dos titãs na mitologia grega, pensava o amor como o retorno à superfície destes sentimentos que relegamos ao abismo no momento em que a ordem se instituiu. Quando Zeus ganhou a batalha ele prendeu os titãs no mais profundo abismo, ou seja, ao final da batalha não existe a destruição do inimigo, mas apenas uma realocação, o universo continua abrigando em seu interior elementos discordantes, apesar da aparente paz que reina no Olimpo. O amor aparecia como o despontar destes elementos subterrâneos, por tanto, um sentimento que se realiza no confronto, no “calor da batalha”. Quais seriam esses sentimentos suprimidos? Aqueles que sentimos sem saber, que não conseguimos evitar, que nos escapam e nos arrastam em seu caminho e cujo confronto se revela inútil, sentimentos que com o passar do tempo aprendemos a “evitar”, mas que nunca conseguimos de fato apaziguar.
Contudo, depois de algumas cervejas, concordei comigo que o amor se encontra para além deste campo de batalhas, como uma espécie de reconciliação entre duas partes que se opõem. Penso o amor como o terceiro termo desta disputa que divide o mundo entre vitoriosos e derrotados, como o fim desta polarização, por tanto, algo que não se define com facilidade, afinal nossas próprias palavras se tornaram parte das fileiras deste grande esforço bélico que hoje conhecemos como “satisfação pessoal”.
Desde que nos estabelecemos como indivíduos e nos cindimos do seio da natureza procuramos nela os elementos que nos interessavam. O que se estabeleceu foi uma interpretação utilitária de nossa realidade, o que não pode se realizar sem uma “antropomorfização” da natureza na tentativa de traduzi-la em caracteres dos quais pudéssemos nos servir para construir um novo mundo, agora afeito ao que julgamos como bom e agradável. Como sempre, neste grande confronto do qual participamos nunca conseguimos extinguir nosso inimigo, ele retorna das profundezas como um pessimismo arraigado em nossos esforços para conferir a realidade um sentido. A cada atitude e pensamento que arquitetamos percebemos que no momento de sua concretização algo não sai como planejamos e que a natureza se recusa a aceitar as regras do jogo. Ainda que venhamos a vencer, a nos empanturrar de nossas veleidades, não tarda uma nova fome se impor e nos tornamos cada vez mais exigentes e mais carentes do que antes. Assim, a guerra estende seus termos e nos entrincheiramos em nossa objetividade, consumindo a natureza e contornando suas limitações avançando em direção a uma realidade compacta e estéril, bem parecida ao mundo que na narrativa mitológica era composto pelo coito interminável entre Urano e Gaia, os seres que nasciam desta relação amorosa não conseguiam viver na superfície, eram relegados ao subterrâneo, a vida em dias de domínio instrumental de nosso planeta se encontra sem espaços e tudo que nasce de nossas entranhas, representado pela multiplicidade de nossos sentimentos e expectativas, não pode ascender à superfície, aquilo que não podemos definir em caráter positivo não existe, “não serve pra nada”.

“- Quê! Será, então, mortal o Amor?
- De modo algum.
- Que é ele então?
- O meio termo, como já te disse, entre o mortal e o imortal.” – O banquete

Suspendo por um momento a questão da polaridade e venho a expor o que tenho percebido nesses últimos dias sobre o amor. Este trecho do banquete de Platão descreve a maneira com que Sócrates procura definir o amor partindo da idéia de que o amor seria o desejo do que é belo, o que o leva a uma situação contraditória, porque a princípio só desejamos aquilo que não possuímos, assim, o amor seria algo horrível, se acreditarmos ser horrível aquilo que não possui beleza. Sócrates expõe seu pensamento a Diotime, sacerdotisa de Delfos, que lhe diz que existe um “meio termo entre a ciência e a ignorância”, logo, Sócrates não poderia definir o amor pela simples oposição entre o que deseja e o desejado, poderia apenas admitir que o amor é o “meio termo entre os dois extremos”.
“preenchendo o espaço que separa o homem de Deus, os gênios unem o Todo a si mesmo” – Banquete.
O amor não faz nada senão unir o que a princípio não estava separado, mas que se polarizou em um conflito encabeçado atualmente por nossa idéia de que podemos alcançar o absoluto com apenas um salto, que basta uma boa análise para conseguirmos calcular e descobrir a realidade em sua totalidade, exercendo um discernimento que se estabelece sobre a razão e na sua capacidade de separar e organizar caos. O Amor quebra esta lógica possuindo em si um caráter totalmente ambíguo, filha de Poros, deus da Abundância e Penia, deusa da Pobreza, o Amor abriga em seu interior algo que nos envolve, mas não podemos definir.
Agora eu percebo que o amor possui uma afinidade com a idéia de reconciliação. Justamente por ser indefinível e presente ela possui esta capacidade de colocar em contato mundos fortemente separados, momento que guarda em segredo uma infinidade de possibilidades que nos surpreendem e fascinam justamente por nos proporcionar aquilo que não esperávamos, ainda que muitas vezes tais revelações carreguem em seu bojo dores nunca sentidas, sua dádiva nos permite alcançar o que anteriormente estava encarcerado sob uma relação de conflito. Não por acaso o Amor celebra a reprodução, por exemplo, no que tange a vida, momento em que o mortal toca a imortalidade não apenas pela criação de um novo ser, mas pela aceitação de que o novo vem a substituir o velho, e no que tange ao que nosso pensamento porque nossas idéias somente permanecem coesas porque outras foram esquecidas, o devir* do qual fugíamos que nem o diabo da cruz aparece de mãos dadas com a eternidade e diante do nosso espanto o Amor nos sussurra: eles são velhos amigos! ;) *de.vir1 (decalque do fr devenir) vint Tornar-se; vir a ser, devenir. *de.vir2 sm (decalque do fr devenir) Filos 1 Série de mudanças concretas pelas quais passa um ser. 2 A própria mudança. - Dicionário Michaelis

Comentários

  1. A vida é tão desconhecida e mágica, dorme às vezes do seu lado, calada..

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  2. Um breve comentário: Deveríamos estudar os gregos na escola...

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