Sobre a imprevisibilidade

Do Desejo
(Hilda Hilst)

Que és? Perguntei ao desejo.
Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada.

III

Colada à tua boca a minha desordem.
O meu vasto querer.
O incompossível se fazendo ordem.
Colada à tua boca, mas descomedida
Árdua
Construtor de ilusões examino-te sôfrega
Como se fosses morrer colado à minha boca.
Como se fosse nascer
E tu fosse o dia magnânimo
Eu te sorvo extremada à luz do amanhecer.

***

Porque... o amor é momento de conversão. É chamado inegociável para uma caminhada à beira do abismo. No escuro repentino: galáxias. O horror de uma primavera brotada na carne. O universo absolutamente transformado, o sublime implacável arrombando a razão, rumo inquestionável se impondo, amoral, para não sei onde. O mistério desvirginando o mundo e a tragédia do irrealizável.

***

No dia 17 de setembro, fui à palestra do psicanalista Plínio W. Prado Jr. sobre A Condição Amorosa Hoje. Com base, principalmente, em Freud e em Barthes (deste último, Fragmentos de um Discurso Amoroso), Plínio citou Vinícius de Moraes, que, quando perguntado se acreditava em amor à primeira vista, respondeu "mas existe outro?", A Paixão Segundo G.H., de Clarice Lispector, e a abertura de Carta a D.*, de André Gorz. Para ele, ao amor, é intrínseca a novidade. Isso significa que não é possível aprender a amar, preparar-se para um encontro amoroso, defender-se de um, pensar em estratégias, tornar-se menos vulnerável e, no limite, resguardar-se do sofrimento. Ou seja, nem fazendo anos de análise (nem estudando muita filosofia, dedicando-se ao budismo, caindo na putaria ou casando e tendo filhos). O amor, necessariamente, irrompe onde não estamos preparados, nos pega de surpresa, nos desmonta, nos põem nus, traz à tona a espontaneidade (com todo o desajuste e perigo), enfim, nos cola à intimidade cruel do rumor do mundo.

A modernidade, em seu impulso controlador, tenta domar o amor, achatando-o em encontros programados na ilusória segurança se sites de encontro (e em mil outras artimanhas não tão caricatas). Como se fosse possível defender-se da torrente da vida em curso na Amazônia e no coração humano. A vida é rebelde. O amor não é encapsulável. O verdadeiro encontro amoroso é filho do acaso, é um milagre, é um absurdo - escapa a todo tipo de previsão, prevenção, explicação. E somos crianças de novo, ainda que anos de psicanálise nos tenham engessado numa capa bem adulta. Ainda que o capitalismo tente arrombar a porta: o controle que muitas vezes queremos impor à existência é análogo ao gerenciamento empresarial (invisto-me afetivamente num outro. Se esse outro não corresponde, vale dizer, se o investimento não dá retorno, vou à falência). Esse mecanismo mercantil esmigalha o imponderável do humano, reciclado, então, em mercadoria. Sustentabilidade não é um termo que se aplique a essa área da vida. Não existe ISO de segurança para o amor paixão.

E aí... ele lembrou como é significativa a representação do cupido, que é uma criança armada. Tiros irresponsáveis, imprevisíveis, tendo qualquer um como possível alvo. O mais difícil talvez seja aceitar que estamos submetidos aos caprichos de algo que não obedece à lógica humana. Estamos à mercê. À mercê tanto da possibilidade de levar uma flechada como de não levar uma flechada. O amor pode ou não se dar. E, se acontecer, levantará voo quando bem entender, deixando-nos atordoados com sua rude chegada e incompreensível partida. Caímos no vazio do abandono. Abandono não de um outro, mas da força avassaladora que, momentaneamente, nos habitou - e que foi eterna enquanto durou (o paradoxo tão dolorido quanto preciso de Vinícius de Moraes "que seja infinito enquanto dure"). Então, no deserto do abandono, podemos erguer defesas e sustentar um casamento esvaziado, cobrir com véus de justificativas uma relação que, simplesmente, acabou, ou ver emergir crua a pergunta inevitável: qual o sentido? Qual o sentido da existência?

_____

*"Você está para fazer oitenta e dois anos. Encolheu seis centímetros, não pesa mais do que quarenta e cinco quilos e continua bela, graciosa e desejável. Já faz cinquenta e oito anos que vivemos juntos, e eu amo você mais do que nunca. De novo, carrego no fundo do meu peito um vazio devorador que somente o calor do seu corpo contra o meu é capaz de preencher."

Comentários

  1. Bem vinda de volta ao seu blog!!
    Valeu a espera.

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  2. Ah... deixa eu postar um fragmento de um verso, composto por uma personagem de Voltaire, que acabei de ler;
    "...Na paz universal somente o amor faz guerra:
    É o único tirano a quem não resistimos."
    rs

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