O amor é uma flor de chapoticaba


Sr. Wiggand Schneider - meu vovô


31 de julho
abriu a flor de chapoticaba
1990

5 de julho 1991
abriu a flor de chapoticaba
2ª florada dia 24 de julho

Chapoticaba
Abriu a flor
18-05-99

Este registro de floradas está escrito a lápis no umbral da porta do ranchinho da casa do meu avô, em Pirassununga. Este final de semana fui visitá-lo junto com minha mãe, pois ele havia passado mal e já fazia muito tempo que não o via.

Ele não lembra mais de mim, e me cumprimenta como um senhor que encontro pela primeira vez na rua... “olá” ele diz, meio confuso por ter um “estranho” dentro de sua casa. Lembro das últimas vezes que o encontrei lúcido, ele contava as mesmas histórias de quando trabalhava numa fábrica de tecelagem e tinha que reparar as paredes que eram atingidas pelos eixos das máquinas, pois estas “escapavam” de vez em quando e derrubavam pedaços da parede da fábrica. Por causa do barulho das máquinas tinha ficado com os ouvidos bem debilitados, por isso não entendia o que a gente falava. Meu vô é um pedreiro de mão cheia, literalmente alemão – alias, ter um neto japonês realmente não deve ser algo fácil de lembrar – ele levantava paredes, assentava azulejos, fazia rampas, só para você leitor ter uma ideia, demoramos uns três dias para colocar um portão! Mas também, ele nunca errava. Eu, como ajudante de pedreiro mirim, ralava colocando calços, tirando calços, tirando terra, colocando um pouquinho lá naquele canto...rs Seu Wiggand era um chefe de obras meticuloso, agora, infelizmente, mal consegue se levantar da cama.

Seu último conselho para mim, isso em um tom solene, foi para tomar cuidado com as mulheres da vida e para não me envolver com jogos de azar. Posso dizer que, até agora, tenho cumprido seus conselhos..rs mas na hora que ele falou eu dei muita risada. Ele havia me dito que eu deveria tentar ser um artista e que se desse errado poderia trabalhar numa loja de Xerox... minha família inteira caiu na gargalhada. Nas últimas vezes que nos falamos ele sempre chorava ao se despedir, acho que já sabia que sua lucidez estava se esvaindo e que o tempo estava vencendo seu vigor.

Meu avô me ensinou uma das máximas de relacionamento que eu acho insuperável, que consiste na seguinte regra, que para um relacionamento durar ai seus dez anos...rs, vamos ser otimistas, basta que um cozinhe e o outro lave a louça. Se houver este “felling” onde um complementa o trabalho do outro, sem que ninguém se sobrecarregue, o relacionamento tem tudo pra ter um final feliz. Meu avô sempre lavava a louça, e quando eu digo sempre é sempre mesmo! Isso porque depois do almoço dá aquela preguiça, mas seu Wiga estava lá, incólume, lavando aquele monte de prato, panela, e, na maioria das vezes, sozinho.

Minhas memórias dos momentos que passamos juntos sempre me inspiram e quando reparo nas coisas que meu vovô fazia e falava tenho uma referência clara do que é um homem de caráter. Meu avô é um tipo de pessoa que não encontro com frequência e sua simplicidade é tão bruta e ingênua que chega a lembrar o Forrest Gump, acho que deve ser por isso que eu gosto tanto do filme. Ele come as cascas queimadas do pão, a pele da galinha, a nata do leite e odeia açúcar, pois ele guarda essa educação antiga que diz que devemos consumir a vida em todos os seus aspectos, tanto no doce como no amargo, pois é a casca sem gosto que carrega a “força” do alimento, sem contar a desconfiança pelo que é puramente doce, “açucarado”, isso “faz mal!” dizia ele quando me via colocando açúcar em tudo.

O amor talvez seja dessa época... uma coisa daquelas bem antigas, quase esquecidas, que para encontrar novamente precisamos deixar de nos preocupar com o futuro, é necessário lembrar das coisas, das pessoas, das floradas...

Deixo-lhes alguns trechos da poesia “Olhos Parados” de Manoel de Barros.
...
Sair andando à toa entre as plantas e os animais
Ver as árvores verdes do jardim. Lembrar das horas mais apagadas.
Por toda a parte sentir o segredo das coisas vivas.
Entrar por caminhos ignorados, sair por caminhos ignorados.
...
Olhar, reparar tudo em volta, sem a menor intenção de poesia.
Girar os braços, respirar o ar fresco, lembrar dos parentes.
Lembrar da casa da gente, das irmãs, dos irmãos e dos pais da gente.
Lembrar que eles estão longe e ter saudade deles...
...
Que coisa maravilhosa, exclamar. Que mundo maravilhoso. Exclamar.
Como tudo é tão belo e cheio de encantos!
Olhar para todos os lados, olhar para as coisas mais pequenas,
E descobrir em todas uma razão de beleza.

Comentários

  1. Sinto-lhe informar mas admiro TERRIVELMENTE seus textos!!!! Muitíssimo obrigado!!!

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    1. Opa! fico feliz por saber disso, justo agora q eu estava me perguntando se alguém ainda lia o que eu ando escrevendo..rs

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    2. Sim, a poesia é do livro Poesia Completa do Manoel de Barros. Eu acho importante atentarmos para as coisas de forma a guardá-las carinhosamente, criando uma nova maneira de fruir o tempo que passa, sem essa pressa que caracteriza nossa vida proletária..rs Por isso achei maneira a atenção de meu avô às floradas de sua jaboticabeira... enfim, temos muito a aprender com os mais velhos...rs bjs gata!

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  2. Nossa, cara... muito lindo!!! Sério, me emocionou... de verdade...

    Outra coisa: como ele estava certo sobre a loja de xerox!! rs

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    1. é san.. se tudo der errado vamos montar uma loja de Xerox!???? haiuahiuahiauhaiuahiu

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