O cheiro de seus cabelos

Blue Landscape - Marc Chagall
Hoje faz um dia frio. O horizonte está limpo após alguns dias de chuva e eu contemplo um belo por-do-sol. O sol desce através de colunas de nuvens estendendo braços de luz por toda a paisagem. Um pouco abaixo deste quadro vejo a marginal convulsionada de carros e caminhões, prédios e o rio tietê melancólico seguindo seu curso.

Como a natureza é benevolente nos brindando com este espetáculo primaveril! Comovente, se tivesse uma câmera à mão não tiraria foto nenhuma. Este seria nosso segredo - penso à Deus: fique a vontade... estou aqui e não quero mais nada - só olhar - como Moisés prostrado na fenda da rocha.

Preciso anoitecer.

A dois meses de partir de São Paulo e de minha vida aqui construída, consigo me lembrar nitidamente de meus últimos meses como aluno da EEAR em Guaratinguetá. Parece que todas as bordas estão se juntando e sinto algo estranho dentro de meu peito, os cheiros! Como eles invadem minha alma! Sinto que estou ao lado de uma pessoa muito amada que não consigo ver e apenas consigo sentir o cheiro de seus cabelos. Acontece que o cheiro de seus cabelos é muito parecido com o cheiro do musgo das árvores de minha infância e é igualzinho ao cheiro dos ventos que balançam minha janela às três da madrugada.

As árvores balançam bruscamente - adoro esse barulho - e um pássaro lamenta ao longe. Contemplei este quadro com os ouvidos, deitado e encolhido debaixo do edredom. Acordei as três porque as ruas de meus sonhos estavam cheias d´água, acho que tinha chovido muito a noite..rs no final de meu sonho uma voz me diz:"as dissonâncias das coisas".

Diante de mim se abre um deserto ou uma nova vida?

Essa pergunta eu faço por uma curiosidade besta, pois não estou preocupado. Queria poder carregar meus amigos comigo, tipo em um barco, por toda a minha vida. Daí pararíamos em cidades longínquas e conheceríamos as gentes e os costumes, no final voltaríamos para a nave e contaríamos as piadas do dia.

Sempre faço caminhadas com Urano. Ele é caprichoso demais! Ele estava comigo quando fui colar grau na seção de alunos da USP, ele e mais o cara que estava atrás de mim na fila de atendimento e a secretária entediada com o livro da "promessa do filósofo" que eu tinha que assinar. Quando eu olhei pra o planeta transpessoal ali parado, ele meu me olhou de volta e disse: o que mais você queria!? Bolinho de festa!?

Ainda me perguntam se eu queria ter filhos... Todos os sábados quando vou para aula de astrologia eu desço a Teodoro e dou um rolê pelas ruas de Pinheiros e sempre vejo um pai com sua filha sentada nos ombros caminhando com as compras nas mãos. Um dia vi um pai com suas duas filhas. Uma carregava uma caixa grande de compras, ela parava e ajeitava o boné. O pai parava olhando para trás:
- Precisa de ajuda? Olha pra atravessar a rua!
- Tô indo!!!

aiai

Sinto o cheiro dos seus cabelos e não consigo fazer mais nada - fecho os olhos e levanto o nariz - procuro saber pelo olfato.

Lembro dos meus cursos de arte com a professora Deise Careli lá nos meus dezoito anos. Encostava minha barra forte e sentava à mesa. Ela ligava o rádio bem baixo numa estação bem agradável e começava a me mostrar diversos materiais, livros, fotos e perguntava o que eu queria trabalhar. Eu ficava meio perdido porque não estava acostumado a cultivar meus gostos. Depois de muitos "não seis" ela me intimou: " Nós podemos ir para o segundo andar e fazer pintura a óleo de frutas, pessoas, mas eu acho que isso não tem a ver com o que eu percebo em seu estilo..." Essa foi a minha terapia dos meus dezoito anos, ela me emprestava manuais sobre Picasso, Gauguin, Cezanne... era o paraíso. Guardo tudo o que fiz naquela época com muito carinho.

A arte sempre foi passageira na minha vida. Se eu pudesse escolher um lugar para morrer, queria que fosse num atelier, sentindo o cheiro das tintas.

As vezes chego de manhã no alojamento cantando "índia seus cabelos", mas um amigo me disse uma vez que a música ficou tocando o dia inteiro na sua cabeça... agora eu canto menos..rsrs

Percebe isso? Esse cheiro de vida molhada no asfalto?
Depois de passar meu último inverno seco em SP enxergando tudo embaçado, parece que depois da chuva o horizonte ficou HD, consigo enxergar as janelas dos prédios! Uau!

O cheiro de seus cabelos me invadiu as memórias, os pensamentos e as palavras... não consigo pensar em outra coisa se não nas minhas memórias mais tenras - você é minha madeleine prustiana! Olha que elogio maneiro..rs

Fiquei tão afetado que não consegui trazer referências...vamos inventá-las

Havia na chuva apenas o cheiro de seus cabelos,
No meu travesseiro, um fio de cabelo seu
Não consigo parar de imaginar o cheiro de seus cabelos
Espantado descubro que ele está espalhado por todas
As minhas roupas, memórias, e cacoetes

Sem querer me pego guardando seus cabelos
Em um saquinho de lembranças
Pego um e coloco contra o sol
Para ver a cor

Quando as árvores barulham de madrugada
Eu sinto seus cabelos passando em meus sonhos
Estico meu pescoço pra ver se alcanço
O seu lado da cama

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