O sorriso da deusa

Este momento solene - o sorriso da deusa
D. W. Winnicott: ¨Ao morrer, um homem está morto, ao passo que as mulheres sempre foram e sempre serão¨ Citação da ilustre Amnéris em seu post sobre "O terror de ser deixada".

Gosto de conversar com mulheres, novas, velhas, pequenas, com sorriso fácil, ferozes, falantes, quietas, desconfiadas, simples, sofisticadas, dançarinas, professoras, psicanalistas, porque depois de algumas preces e rogos elas deixam transparecer pequenas trincas que, sem o menor esforço, se ampliam, precipitando grandes massas de terra rio adentro. Um espetáculo. Daí a deusa se revela - na fragilidade.

Confesso que de início havia um medo, não sei do que, que me deixava além do átrio do templo, apenas observando os casais caminhando pelas ruas de mãos dadas, aquelas amigas do colégio que eu não me cansava de olhar... a mulher estava em um patamar distante. Isso era de certa maneira confortante, pois permitia às minhas fantasias um trânsito pacífico pela realidade, tudo estava bem, mas nada acontecia.

Decidi me iniciar no culto e percebi que certos marcos devem ser respeitados, afinal, a deusa é caprichosa. Uma delas é passar pelo ridículo fundamental de puxar um papo com uma garota que te impressiona, gaguejar e pensar um roteiro que se esquece logo que você está diante dela. Nesse ponto me lembro de fisionomias diversas e se eu pudesse adivinhar o que elas pensavam, acho que seria algo perto disso: “meu deus, o que ele vai falar?”.

Essa situação é estranha para os dois, creio eu, mas deve ser cumprida como o mergulho dos pinguins enfileirados à beira do precipício gélido. Enquanto não pulamos, continuemos este post.

Feito o primeiro passo, o culto continua. Quebrado o espanto inicial, posso me dispor diante da deusa como um iniciado e, como acontece com todos os iniciados, a gama de coisas que não se pode fazer ultrapassa de longe o que é permitido. Depois de um tempo lavando os utensílios do templo, rogando à deusa dia e noite e cumprindo todos rituais, eu percebo que a deusa está insatisfeita.

A pergunta “o que te deixa insatisfeita?” é parte de um momento do culto pelo qual o iniciante deve passar para atingir o segundo nível, a partir do qual é proibido de fazer a tal pergunta. Depois de alcançar esta revelação, quase um satori, o iniciante se vê livre das obrigações ritualísticas e percebe que agradar a deusa significa abandonar o culto, fazendo tudo que não era permitido até então. Tudo isso só acontecerá se o iniciado sobreviver ao sansara, que é aquele ciclo (quase infinito) pelo qual o enamorado passa para perceber uma verdade mais fundamental, pois descobrir o “por que” da insatisfação é tão fácil como responder àquelas perguntas de anedotas budistas, tipo: “qual é a forma da sombra da chama de uma vela?”. Descobrimos que a pergunta é indicação de uma verdade superior..rs

Avançamos para estágios altíssimos de culto, agora tudo o que é certo é errado e o errado é pior ainda. Mas do meio da tempestade contemplamos um raio súbito de luz solar a romper as trevas: o sorriso da deusa. Isso é algo que nos marca, um arrepio inebriante perpassa minhas tortas vértebras, jejuo dias e noites pelo privilégio de estar ali: diante de seus olhos em sorriso. Este acontecimento é o ponto alto do culto e nos faz esquecer todos os percalços enfrentados, ligações não atendidas, mensagens sem respostas e encontros desmarcados..rs

Marilyn Monroe disse que um homem que faz uma mulher rir, pode fazer com que ela faça qualquer coisa. Isso era o oráculo da deusa, indicando aos iniciados que o mais importante está neste momento mágico, e que tudo o mais é apenas liturgia.

Eu imagino que as mulheres partilham do sagrado de uma forma pura e que isso gera um desencontro incômodo. As deusas que caminham entre nós não reconhecem este quinhão de segredos que a vida confiou a elas por ocasião de sua manifestação em “curvas e carnes” e por isso estão a se debater por uma interioridade translúcida, inteligível, segura. A frase escrita no pórtico do templo de Delfos dizia aos seus visitantes: “conhece-te a ti mesmo”, isso porque vocês, minhas deusas, não precisam disso.

Vocês sabem das coisas.

Uma vez atravessei minha Guaratinguetá de bicicleta para terminar um namorinho, chegando à casa de minha adorada ela abriu o portão e perguntou: Você veio aqui pra fazer isso que eu estou pensando? Ela bateu o portão na minha cara e eu nem tive tempo de descer da bicicleta. Voltando para casa fui atropelado por uma moto, acho que vocês usam seus poderes para o mal, de vez em quando..rs


Não me canso de observar o feminino se divertindo de viver, brincando conosco, mortais, achando graça do efêmero e de nosso esforço em lhes impressionar.Talvez vocês, minhas deusas, sofram mais porque tenham em seu horizonte este conhecimento hermético das coisas, ao mesmo tempo em que lidam com a singularidade da condição humana, que nos conduzem pela mão enquanto percorremos o mistério da vida.   

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