O último a saber


Cena do filme - Closer

- Você já me traiu?

(Silêncio) Desvia o olhar...


Daqui em diante uma massa de sentimentos precipita no fundo do estômago e reduz a cinzas tudo o que nos resta de orgulho. Falar de traição em um blog cujo tema é o amor parece ser uma contradição, porém, eu acho que a traição pode nos dizer muitas coisas. Ela nos torna um pouco universais, compartilhamos refrões bregas, choramos... Chamamos nosso melhor amigo para uma terapia de bar, convocamos os deuses para desabafar e naquele fim de tarde o corno é possuído por Nelson Rodrigues, conta tudo nos mínimos dolorosos detalhes. Depois de tudo - tapinha nas costas.

Comecemos pelo Jorge, um corno que todo mundo precisa conhecer quando estuda para o vestibular. Esta citação eu ouvi em uma das minhas primeiras aulas de filosofia lá na FFLCH, num curso do Espinosa com a Marilena Chauí. Ela usou esta citação para comentar o adultério pela ótica da ética geométrica, pois este trecho descreve como o amor pode esconder correntes subterrâneas, conexões contraditórias, sendo o adultério um exemplo maior de como podemos abrigar sentimentos opostos, complexos, em um mesmo instante.

"Não podia estar muito tempo na alcova de Luíza, a desesperação trazia-o num movimento contraditório; mas ia lá a cada momento, sorria-lhe, aconchega-lhe a roupa com as mão trêmulas; e ela dormitava, ficava imóvel a olhá-la feição por feição, com uma curiosidade dolorosa e imoral, como para lhe surpreender no rosto vestígios de beijos alheios, esperando ouvir-lhe nalgum sonho da febre murmurar algum nome ou uma data; e amava-a mais desde que a supunha infiel, mas de um outro amor, carnal e perverso. Depois ia fechar-se no escritório, e movia-se ali entre as paredes estreitas, como um animal numa jaula." O Primo Basílio - Eça de Queirós

Para Espinosa, devemos tomar cuidado para escolher os objetos aos quais nos ligamos por amor, porque uma vez estabelecido os vínculos, o indivíduo abre canais de afetividade que não pode mais controlar, eles possuem uma dinâmica própria. Quando amamos nos sentimos felizes pelo que faz o nosso amado feliz, agora, se essa felicidade vem de um outro alguém... continuamos sentindo felicidade! hahaha mas, ódio também, tudo junto. A dona fatalidade puxa este delicado fio ao qual, sem perceber, enrolamos várias partes de nosso ser e tudo desaba de repente, nos percebemos dependentes e múltiplos, muito a contragosto, é claro.

Por isso o Xico Sá fala que o chifre amansa o macho jurubeba, é porque daí ele se torna mais humano, respeitando os laços do amor e tendo mais compaixão daqueles que sofrem por amor, afinal, a traição é o pó do amor.

Aqui me lembro do colega que falou que traição não tem problema se o outro não descobre. Segundo o ilustre filósofo polidor de lentes, quando amamos estamos conectados em vários planos, afetos e ideias, e não somos mais um ser atômico, isolados. O seu amado está ativamente participando de sua vida, ainda que não fisicamente ao seu lado, sendo configurado o que chamamos triângulo amoroso, pois todos participam deste segredo. Na manhã seguinte ao encontro indefensável da hora do almoço, ou daquela viagem a trabalho, o seu "bom dia amor" estará inexoravelmente diferente, e você entenderá que não apenas você e sua amante estavam compartilhando a alcova, o corno também estava lá. Explico.

Geralmente tentamos explicar a traição como algo do tipo "meu parceiro não está mais lá essas coisas", tava ficando meio monótono e então apareceu essa pessoa cheia de sensualidade, dando em cima, não pude deixar passar! Te digo que o ingrediente decisivo para vestir a tal pessoa de uma sensualidade saborosa foi ele, seu amor monótono. Assim, o corno divide seus deleites em cada segundo de motel, potencializando suas volúpias e tornando a traição muito atraente. O que sentimos pelo amante é um sentimento misto, um desdobramento fractal de nossos relacionamentos infelizes.

Existem os modernos que querem ter um relacionamento aberto, "apenas me diga com quem é que tá tudo bem". E não é que em poucos meses o diabo começa a sair justo com aquela pessoa que a corna não gostava, e no fim, perpetra a traição por comer justo aquela "fulana de tal", sem contar para a corna, é claro. O chifre aparece aqui como um destino.

Acho engraçada a estória do Tristão que chegou no tio, um tal de rei Marcos da Cornualha! e falou: "meu.. casa com aquela mulher lá do reino da Irlanda! Gata e gente boa...Isolda, um xuxu! Só faltou ao tio perguntar: por que você não vai lá e casa com ela então? Pra acabar, ainda manda o Tristão ir lá buscar a Isolda pro casório... o chifre foi tão dramático que fizeram várias estórias parecidas, com o rei Arthur e o Lancelot, os ciclos arthurianos. Naquela época o que nós chamamos "amor" era algo muito pessoal para ser tolerado, ao que o "rei" personificava o marido "de direito" ou o laço social que perpassava o relacionamento conjugal. Por isso a paixão que Tristão sentia por Isolda só poderia ser vivida como traição, um aviltamento do papel social do matrimônio. No medieval, amar era trair.

Eu não entendo aqueles que defendem a traição masculina com aquelas teorias de que o homem é um animal que vivia caçando e tinha que acasalar com um monte de fêmeas para perpetuar a espécie, enquanto a mulher deveria ser mais monogâmica por ter que cuidar do bebê. Eu nunca vi alguém cagando no meio da rua lotada, justificando que era uma "vontade tão forte de cagar" não pode segurar, esse debate do instintivo é meio preguiçoso né? Eu percebo as coisas como o oposto deste quadro, pois o instintivo está, mais do que nunca, apagado em nossa civilização. Geralmente, quem lança esse argumento é o cara casado que chifra a mulher, daí eu me pergunto, porque essa besta casou? Seria isso uma coisa instintiva também?

A traição anda em baixa, assim como o casamento, pois as pessoas estão morando junto, união estável e outras coisas menos católicas, recusam o véu e grinalda pois fazer isso pede uma festa de casamento, e isso é muito caro. As vezes ouço que pular a cerca é o que mantem o relacionamento de pé, a tal da "manutenção do relacionamento", eu não discordo disso. O que eu não vejo com frequência são relacionamentos felizes, por isso eu fico me perguntando se não estaríamos todos a perder com este clima de esculhambação, tendo em vista que eu nunca vi alguém feliz por trair.

Aos que sofrem a traição, talvez exista uma mensagem dolorida, oculta sob o pecado do amado, pois a descoberta perturbadora da vida secreta do parceiro é a manifestação de um espaço, ou um esgarçamento dos vínculos, que em parte nascem do próprio traído. Existem formas doentes de relacionamento, de sufocar e controlar o outro chamando isso amor. Nestes casos se enquadra o chifre terapêutico, que permite a descoberta de si mesmo pela traição do outro.

Se você já passou por esta situação terrível, não se sinta mal, pois o próprio Jesus disse uma vez aos cornos fariseus que queriam matar a adúltera: "quem nunca... que atire a primeira pedra".

Pra fechar, que eu já escrevi demais e os meus maiores posts são os menos lidos..rs, deixo-lhes uma nota do mestre:

Senhor Nelson, a maior parte de suas peças e contos tem como tema a traição. O que pode nos dizer sobre ela?
Minha cara, só o inimigo não trai nunca.
Ora, do jeito que o senhor está falando me dá a entender que há tanto traíras quanto cornos em todas as famílias! É isso mesmo?
Não existe família sem adúltera. E o homem de bem, por sua vez, é um cadáver mal informado – não sabe que morreu. E não é só isso. Além disso, tudo passa, menos a adúltera. Nos botecos e nos velórios, na esquina e nas farmácias, há sempre alguém falando nas senhoras que traem.
Por que?
Porque o amor bem sucedido não interessa a ninguém.
...
E você acha que devemos revelar as traições?
É simples; o marido não deve ser o último a saber. O marido não deve saber nunca!

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