Para além da sedução

Princesa Kaguya - Estúdios Ghibli 

Como você se comporta quando está interessada(o) em alguém?

Quando encontramos uma pessoa que desperta nosso desejo passamos a nos comportar de maneira diferente, tentamos agradar, chamar atenção, queremos ser notados e normalmente fazemos coisas bobas, trocando os pés pelas mãos. A sedução é algo muito pessoal, pois quando queremos envolver a pessoa que nos interessa recorremos a nossa estrutura de valores, e exteriorizamos o que pensamos ser as melhores coisas do mundo de forma que o amado seja capturado pela beleza que representamos. Aqui me lembro algumas imagens do reino animal, dos pavões exibindo suas caldas ornamentadas, das danças multicoloridas dos pássaros, da demonstração de força dos ursos, o espetáculo da primavera da vida é algo que nós estamos todos a encenar, direta ou indiretamente.

Quando saímos para uma noitada, escolhemos as melhores roupas, usamos perfumes, montamos um visual despojadamente milimétrico, barba para parecer hipster, tattoo para tocar uma singularidade instantânea, músculos para não passar despercebido, aquele decote matador porque se eles(lindos mamilos) estão lá, por que não pendurar mais esta isca no anzol? E alguém pode dizer que tudo isso é ridículo. "Nunca encontraria uma pessoal interessante numa balada", aqui o repertório muda, passa para uma cultura esmerilhada em anos de sessões de cinema cult e livros interessantes, autores preferidos, vernissages, e continuamos cada um com sua persona... dançando esta musica ancestral.

Acontece que a dança da sedução sempre incluiu um momento de suspensão que agora resumimos à questão do "dar na primeira noite", a suspensão era uma espécie de teste no qual a dama exigia uma prova de amor, algo que fosse alem da performance de fachada, e, assim, habilitasse o pretendente ao prêmio de casar com a dama, o que agora seria aquela primeira ida ao motel? Um namoro? Não sei.
Na animação "O Conto da Princesa Kaguya" o padrasto decide educar Kaguya nos mais esmerados costumes da nobreza japonesa e patrocina uma festa de três dias para atrair pretendentes da alta corte, manda convites e gasta rios de dinheiro. Mas quando o grupo de jovens nobres aparece para conhecê-la a princesa faz algo inesperado.

Os cinco pretendentes se apresentam e ela está oculta por uma cortina, cada pretendente faz um discurso grandiloquente, cada um tentando superar o anterior no alcance dos adjetivos e por isso cada um apela para o que julga ser a mais bela de todas as coisas, ao final dizendo que a princesa superava até mesmo o que eles haviam até então contemplado com suprema beleza. No momento da escolha, a princesa diz que somente acreditaria no pretendente que conseguisse trazer em sua presença o objeto que eles haviam usado como símile de sua beleza, afinal nunca poderiam compará-la a algo que nunca contemplaram. Aqui todos se decepcionam, pois o esforço do padrasto estava sendo jogado fora neste teste absurdo colocado pela princesa. Era uma metáfora! O padrasto brada para a princesa, esta continua em sua posição, irredutível.

O pretendente que prometeu trazer uma árvore de joias de uma ilha idílica retorna com a tal árvore, mas é desmascarado pelos artesãos que não foram pagos pelo serviço, o guerreiro se revela um covarde quando interpelado pelo dragão que prometeu enfrentar, o religioso se revela um sedutor barato e é desmascarado por uma velha cuja filha havia sido seduzida pelo falastrão, o manto que seria feito de um tecido indestrutível se desfaz em cinzas quando posto em uma fogueira e o último morre tentando encontrar seu presente. Todos falham em manter suas promessas e a fama da princesa alcança o palácio real.

Outros testes são muito comuns na antiguidade, como os testes que Psique precisa realizar para desposar Eros, ou os sete anos de trabalho que Jacó se submete para desposar Raquel. Vencer o dragão, ou um grande monstro, o um grande campeonato, sempre esteve no hall de testes para desposar o tão desejado pretendente e todos os testes são, em geral, impossíveis de ser realizados.

A impossibilidade do teste aponta para uma insuficiência do individuo diante do amor e revela um processo de transformação e amadurecimento que culmina com o encontro amoroso. O amor é uma espécie de gatilho para uma jornada que consolida a identidade dos amantes, para além de suas personas, aqui podemos entender a função dos testes impossíveis. Enquanto ficarmos em nosso campo de sedução, usando nossas iscas e dominando os passos da dança, estaremos encenando um jogo onde nossa personalidade é sistematicamente apagada, como a princesa que sofria sob a maquiagem e rituais de bom comportamento, mas que amava a natureza e seu antigo lar nas montanhas. A tarefa impossível exige que nosso caráter se revele na fragilidade, nos passos hesitantes de Psique no submundo, sozinha enfrentando Cérbero, ela se expõe e é auxiliada pelos deuses.

O amor deve ser impossível para nos despojar de certas defesas, de valores que não nos falam nada, pois o teste impossível exige nossa exposição, uma experiencia de solidão no qual nossa mascara é inútil e, então, conseguimos alçar o voo de uma individualidade que transcende o lugar esmagador de nossa persona. Neste lugar peculiar os deuses se manifestam, pois eles se revelam apenas nestes momentos impossíveis, solitários. Por isso, paradoxalmente, o encontro amoroso é um importante momento para a consolidação de nossa individualidade.


    

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