O Homem Vitruviano


A minha vida eu a vivo em círculos crescentes
sobre as coisas, alto no ar.
Não completarei o último, provavelmente,
mesmo assim irei tentar.

Giro à volta de Deus, a torre das idades,
e giro há milênios, tantos...
não sei ainda o que sou: falcão, tempestade
ou um grande, um grande canto

Rilke - O Livro das Horas, trad. José Paulo Paes


Olhando ao nosso redor, o que não é homem? Quando dizemos que a natureza é bonita, não seria esta paisagem uma mera concessão de nosso planejamento urbano-agrário? O rio se tornou esgoto, as florestas, uma reserva de matéria prima para alguma indústria, seja ela farmacêutica, mineradoras... tudo se tornou uma reserva para utilização humana. E o que não nos é útil e bonito, simplesmente ignoramos e atropelamos em algum momento de nosso feriadão.

Qual é a crítica? Deveríamos criar reservas e reflorestar mais? Seria essa a saída do problema? Eu penso que o que ainda não está no horizonte é que existe um modo de vida tecnológico que se impõe à todas as coisas, inclusive ao homem. O que as pessoas não se perguntam é o que é essa tecnologia e o que nós, "usuários" estamos nos transformando. O homem trabalha para operar a "grande máquina do mundo" e sem ele nada funciona, assim, o homem também se tornou uma reserva, algo que existe devido à sua utilidade.

Qual é o perigo aqui? O perigo é destruirmos o mistério. De Deus ao fósforo, tudo se desvela em "valor de uso". Deus virou "causa" de todas as coisas e a nossa religião, bom, ela também se tornou algo que deve servir para alguma coisa. Por isso pastores pregam a tal prosperidade e os budistas uma iluminação, os espíritas uma purificação moral. A religião também cumpre suas finalidades, como qualquer equipamento deve cumprir. E agora me vem a mente o homem vitruviano, a medida de todas as coisas, e com orgulho atribuímos às coisas um valor de acordo com nossas necessidades. Ouro é algo importante, deve ser guardado com cuidado, uma pedra... bom, podemos explodi-la e fazer cascalho para construção.

O primeiro homem vitruviano foi Íxion, condenado por Zeus a ser amarrado em uma roda e a girar pela eternidade. Ser amarrado à uma roda era uma tortura comum na antiguidade, e talvez nossa existência tecnológica esteja amarrando a todos nós à roda de Íxion. Você nunca sentiu uma vertigem quando pensa a respeito de sua vida? Quando refletimos por um segundo a respeito do tempo, logo nos tornamos angustiados, ansiosos, uma certa náusea nos invade porque no fundo estamos girando, girando, em torno de nosso umbigo.

A própria realidade está sendo formatada pelo "mundo imagem" que torna tudo mais a nossa cara, pois aquela praia é muito sem graça, ela ficaria mais bonita se o sol tiver se pondo, assim eu posso tirar um selfie! E agora sim, a praia se torna uma praia.

Poderia falar que tudo isso é uma ilusão! Mas sofremos hoje de uma escassez de ilusões sem precedentes na história da humanidade. Isso porque a ilusão é uma distância respeitável da realidade e não é a toa que Maia possuí sete véus, e que Heráclito dizia que a natureza ama se esconder. Platão atribuía tekné tanto ao poeta quanto ao artesão por entender que toda obra é um surf no mistério da existência, agora nós dizemos que o cientista mexe com Realidades, enquanto o artista e o padre vivem em um mundo de mentirinha.

A vida irá acabar quando o mistério acabar.

Que mentira poderosa essa, a poesia! Graças a essas palavras escorregadias, descubro-me voando em torno de Deus, sendo uma tempestade... me torno atemporal e avanço, a cada verso, rumo ao desconhecido. Apeguemos-nos ao poético e deixemos essa vontade de verdade para os reis Midas de nosso tempo, torcendo para que eles encontrem Sileno o mais rápido possível e descubram o segredo da vida... ouvindo dionisíacas gargalhadas.

Aqui deixo-lhes uma referência gostosa para essa reflexão a respeito da questão tecnológica:

"Mas onde há o perigo,
cresce também
O que salva...

... poeticamente o homem habita esta terra."

Heidegger citando Hölderlin no texto "A Questão da Técnica."







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