Hitobashira e o Edifício da Modernidade

O terremoto de Lisboa, gravura do séc XIX

"acredito que de forma útil, situo o início da modernidade no ano de 1.775 no terremoto de Lisboa, seguido de um incêndio que destruiu o que restava e em seguida um tsunami que levou consigo tudo para o mar.
Por que nesse terremoto?
Foi uma catástrofe, não só material, mas também intelectual. As pessoas pensavam, até então, que Deus tinha criado tudo, que tinha criado a natureza e disposto leis. Mas, de repente, veem que a natureza é cega, indiferente, hostil com os humanos. Não se pode confiar nela. O mundo tem que estar sob direção humana."
Este é um trecho de um entrevista de Zygmunt Bauman a revista MGM, traduzida e publicada pelo site Fronteiras do Pensamento. Neste trecho o pensador indica o início da modernidade com desastre que ocorreu em Lisboa em 1 de novembro de 1775, um terremoto que matou um monte de gente e devastou toda a cidade. Achei muito boa essa datação e o resto da entrevista também, principalmente onde ele diz que estamos em um momento de revolução, mas o fato de estarmos no olho do furacão nos impede de reconhecer este momento especial. 
Esta datação é interessante porque, ainda que existam outros momentos importantes na historia da modernidade, ele toca um ponto central do pensamento moderno... esse furor contra a natureza e tudo o que ela representa.
Talvez esse terremoto de Lisboa tenha sido algo que transcendeu a capacidade de compreensão da humanidade medieval, pois a crença que deus estava no controle dependia de um certo "range" de plausibilidade que foi ultrapassado pelo evento. Após essa destruição colossal, sem precedentes, o "zeitgeist" se mobilizou para escapar ao alcance da mãe natureza, com ou sem deus. A razão incrementada em ciência foi a arma escolhida para levantar as muralhas da cidade e demos o passo além para vencer o trágico. Aqui, como disse Nietzsche..."by-passamos" deus, mesmo que com uma boa intenção.

Pensando em terremotos, vem a minha mente uma antiga prática japonesa chamada "Hitobashira"  que consistia em enterrar mulheres sob os fundamentos dos principais prédios em construção, para protegê-los contra terremotos. As mulheres eram sacrificadas para favorecer os empreendimentos humanos em vista dos deuses, ou da natureza. Por isso, Agamenon sacrificou sua filha Ifigênia e Andrômeda foi amarrada ao rochedo para ser devorada pela besta marinha, as mulheres eram escolhidas por possuírem um relacionamento mais próximo com os deuses. Nestas épocas remotas ainda havia um relacionamento, ainda intermediado pelo religioso e a mulher, da humanidade com a natureza e, por mais estranho que isso possa parecer, os sacrifícios, humanos ou não, eram uma parte importante(não no sentido utilitário) das culturas antigas. 
"A noção de poder... nasce inevitavelmente de uma interpretação dualística de realidade. Quando o dualismo não reconhece a presença de um princípio integrador que o suporta, sua inclinação natural para destruição se revela de forma desenfreada e incontrolável.
(...)Ocidentais falam sobre conquistar a natureza, nunca sobre cooperar com ela. Eles sobem um montanha alta e declaram que a montanha foi conquistada. Eles conseguem lançar um foguete através dos céus e dizem ter conquistado o ar. Por que eles não dizem que agora são mais íntimos da Natureza?
(...)o que é cego não é o amor, mas o poder. Porque o poder falha profundamente em reconhecer que sua existência é dependente de outras coisas." Dr D.T. Suzuki

No decorrer da modernidade, conquistamos várias coisas... os céus, os mares, os selvagens, a agricultura, a lua, as doenças e conquistamos também a mulher.

O que eu poderia chamar de "feminino" foi conquistado dezenas, milhares de vezes, durante toda a história da humanidade. Desde Marduk dilacerando sua mãe Tiamat(serpente marinha) e construindo o mundo sobre suas vísceras, até o deus hebraico pairando "sobre" a face das águas(o mar como o feminino), Urano violentando Gaia... toda mitologia básica da cultura ocidental é bastante dura com a mulher. O que me faz acreditar que não é uma coincidência que nossa civilização é uma construção de poder que submete ora a natureza, ora o feminino. Por isso, a crítica do Dr. Suzuki vai além do que a cultura ocidental considera palatável, já que toca em um desiquilíbrio fundamental e nos coloca diante de um fato desolador: o feminino e o amor não estão em nosso horizonte.

Imagino um canteiro de obras no Japão em algum dia no século XVI, os trabalhadores reunidos diante do imenso poço sobre o qual lançariam o fundamento do castelo, todos aguardando uma mulher se aproximar. Ver o seu corpo ser lançado no fundo da terra e observar a coluna ser posicionada sobre seus restos mortais, o que esta sociedade contemplava sob a fachada daquele suntuoso castelo era algo embebido por esta cena. A lenda de Hitobashira é uma imagem que possui um significado muito forte e me faz pensar no que nós apreendemos quando olhamos a "skyline" de grandes cidades como São Paulo? Será que temos uma ideia do que nós enterramos nos fundamentos destas muralhas de concreto?

O que as mulheres enterram tentando se enquadrar em um mundo avesso à sua carne? O que subsiste de feminino sob o escombros do consumo da industria estético-farmacêutica? O que os homens enterram sob essa relação de poder alienante?

Pensar a modernidade como uma resposta à tragédia do terremoto de Lisboa indica que por trás deste projeto de poder existe uma boa intenção(evitar futuras tragédias) e não raras vezes em nosso ilustre século XX perpetramos absurdos com as melhores intenções. O problema das boas intenções é que elas são livres de críticas e os antigos sabiam que elas possuem um preço alto, uma sabedoria que hoje nos falta. O que eu quis indicar aqui é que o feminino e a natureza estão pagando o preço. Como valorizar o feminino se continuamos construindo nossos castelos, se guardamos em nosso peito esse medo de terremotos? ... Se o individuo permanecer assim, tão importante?

Palavras que me brotaram:

A sua morte não contradiz a Vida
É, antes, a sua afirmação
Confie em mim

  


Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O último teste - histórias que nos ajudam a encontrar o caminho

Noé e a metáfora da vida

O retorno da alegria