A beleza nua

Mishima

"Beleza carnal, beleza espiritual, tudo o que se relaciona com a beleza nasce na ignorância e da escuridão, e só delas. Não é permitido saber e continuar belo. Se a ignorância e escuridão são a mesma coisa, então uma competição entre o espírito que não tem nada para escondê-las e a carne que as esconde atrás de sua luz ofuscante não é competição alguma.

A beleza é só beleza da carne."     A queda do anjo - Mishima

Observando o mar de onde brotou Afrodite, toda a amplitude e escuridão que se exibe a pleno dia, as profundezas e o azul que se espraia invadindo o fundo de meus pensamentos, sinto que a beleza não está a nosso alcance.

As coisas que estão no mar delicadamente desaparecem, depois voltam e nos surpreendem. Assim é a beleza, algo que não se deixa apreender pelas mãos... se debate e retorna para as profundezas.

Parado ao lado da faixa amarela esperando meu trem, contemplo o trem parado na outra plataforma e que carinhosamente me presenteou com uma bela garota, de pé, apoiada sobre o braço direito que segura a trave de aço. Esse braço levantado estica a blusinha branca revelando a silhueta de seu quadril e seus olhos não se preocupam com um olhar que logo estará para trás, perdido para sempre. Normalmente desvio o olhar, mas dessa vez me abandono ao prazer do momento perdido.

A beleza nos encontra distraídos e nos olha nos olhos - arrebata. Deveria o apaixonado deixar o encantamento e agir? Seria possível vencer o momento e dizer oi? Conheço alguns amigos que se atrevem ao encontro com o encanto e pedem o nome e o telefone, face, whats, etc. Se lançam ao mar em busca de seus segredos e prazeres, coisa que eu admiro, mas confesso que não consigo deixar a mera contemplação. Leio meus livros e contemplo corpos belos e feios todos os dias e isso é algo que me encanta.

Algumas pessoas se esforçam para ser belas, se produzem e escolhem roupas, tingem, cortam, alisam, sofrendo satisfeitas, olhando a própria silhueta em todas as janelas de carros. Queremos confirmar nossa beleza a cada olhar, olhar, olhar... não conseguimos escapar ao olhar, mantendo a carne sob custódia a cada segundo. O que nos aconteceria se descobríssemos que a carne ignora nosso olhar?
Certamente, perderíamos menos tempo tentando ser belos e a beleza, talvez, tivesse mais espaço para estender suas raízes... na ignorância.

Eu perdi meus óculos ano passado e me sinto muito feliz por não enxergar bem, pois os detalhes tornam as pessoas mais feias e essa orgia do olhar não me apraz mais. Algumas vezes, conhecidos reclamam que eu não os comprimento. Mil desculpas.

Sócrates e Alcibíades
"Por que, divino Sócrates, insistentemente
Veneras este jovem? Não conheces nada maior?
Por que, tal como sobre os deuses, voltas
Com amor teu olhar sobre ele?

Quem o mais profundo pensou, ama o mais vivo
Quem olha o fundo do mundo, este compreende a elevada juventude
E muitas vezes, ao fim, os sábios se inclinam diante da beleza."   Holderlin

Insistimos em acreditar que pensar é retirar os véus de Maia, é tocar a verdade nua. Não. Deixe os véus, paremos de assediar a vida. Toda esta civilização é muito despudorada e por isso mesmo, muito feia. Pensar, aqui, está em um plano de respeito com o que é ilusório e vivo... por isso, admiro e amo esta filosofia poética dos pré Socráticos e não me espantei quando não encontrei um filosofo bonito no departamento de filosofia..rs Neste sentido, nunca fomos tão bem sucedidos quanto neste empreendimento de apartar o conhecimento da beleza, naturalmente, estabelecemos espaços e grupos que se desprezam e distanciam pelo prazer maior de se identificar com um esteriótipo.

A beleza vagueia órfã de segredos, como um anjo caído.

Toda a minha vida é este esforço de construir um segredo, cosendo as sombras com linhas silenciosas, tecendo, com minha alma, as cobertas de nossa querida filha das profundezas, a Beleza.

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