Girando em falso

A celebração das estações como um sinal de conexão entre a natureza e o humano

"Nenhum ritual tribal até hoje registrado jamais tentou impedir que o inverno chegasse; pelo contrário, o ritual prepara a comunidade para suportar, juntamente com o resto da natureza, o frio terrível da estação." Joseph Campbell - O herói de mil faces

Geralmente interpretamos os rituais religiosos como uma tentativa humana de controlar a natureza, assim como entendemos os rituais mágicos como uma tentativa de controle das doenças e dos males da existência. Costumamos olhar o passado com um ar de comiseração e quando encontramos algo interessante, pensamos: nossa, como os antigos sabiam disso ou faziam aquilo!? Isso é apenas uma maneira de expressarmos o quanto nos sentimos o cume do desenvolvimento humano e, por isso, nos assustamos com o quanto os antigos sabiam das coisas... até que eles não eram tão burros.

O que não conseguimos ver é que os antigos de certa forma nunca foram antigos, eles eram eternos. Mas como eu poderia dizer isso dos antigos se eles desapareceram, se seus hábitos foram engolidos pelo tempo e não são mais cultuados ou celebrados? Como podiam ser eles eternos?

Os antigos eram eternos porque eles entendiam que a existência era um jogo de funções que preenchemos neste breve período que chamamos vida. O indivíduo entendia que ele não era um Padre, um Rei ou uma Rainha, mas que ele por um momento encarnava aquele papel. Essa comunhão tinha que ser temporária, pois o indivíduo era apenas um elo do que se entendia como uma cadeia maior, o social. Essas coisas não se confundiam, o indivíduo não queria ser rei para sempre, pois aquilo era apenas parte de um processo maior, no qual o individuo estava momentaneamente imerso.

Para tornar isso mais claro, o individuo atualmente não percebe essas diferenças. Nós nascemos querendo ser isso e aquilo como se isso fosse a coroação de nossa individualidade, quando, na realidade, é a coroação de seu oposto - o social no indivíduo. Na antiguidade o individuo se estabelecia pelos rituais de alienação que aconteciam pela celebração da maioridade. O jovem deveria passar por temporadas em total solidão no seio de uma selva ou em outras comunidades, desamparados. Esse desamparo era fundamental para consolidar o indivíduo para além da comunidade, servia para conectá-lo com o universo. Depois dessa temporada no ostracismo, o indivíduo era capaz de perceber seu papel em sociedade de uma distância que nós não conseguimos, porque não existimos além dos limites do que recebemos de nosso contexto social.

"Nenhum homem retorna de tais exercícios e leva a sério a ideia de ser o Sr. Fulano de uma tal cidade do USA...O objetivo não é ver, mas perceber que alguém É, aquela essência; então a pessoa é livre para caminhar pelo mundo como aquela essência no mundo. Igualmente, o Mundo também é feito dessa mesma essência. A essência do Indivíduo e do Mundo: esses dois são um. Então, a diferenciação, ou o exílio, não é mais necessária. Em qualquer lugar que o herói esteja, qualquer coisa que ele faça, ele está sempre na presença de sua essência - Porque ele tem o perfeito olhar para ver. Não existe um indivíduo separado do mundo. Logo, assim como o assumir uma função social é a realização do Todo no individuo, assim também o exílio traz o herói para o Eu(Self) no Todo."

A chegada do inverno era celebrada, assim como seu fim, não como uma tentativa de manipular a realidade, mas como uma celebração do inverno no Humano, pois o humano ainda não se via como separado do movimento do universo. E assim, cada função social era a celebração do todo no indivíduo e o indivíduo sabia que sua essência nunca seria redutível à função social, ele sabia ser além do social, conectado ao todo pela sua essência.

Essa conexão é o ser eterno dos antigos. Infelizmente, estaremos distantes do eterno enquanto confundimos o ser pelo vazio do Eu autônomo e com isso nos privamos das celebrações da fartura da primavera e das privações do inverno. Nos encontramos apartados do todo, para sempre alienados.

"O maravilhoso ciclo das estações, com seus períodos de escassez e de alegria, é celebrado, demarcado e representado como uma continuação do ciclo da vida da sociedade humana."

Os rituais eram as demarcações que balizavam esta complexa rede de identificações na qual estamos atualmente imersos, sem norte nenhum, pois queremos que o mundo se enquadre em uma perspectiva individual de valoração que nunca será efetiva, já que o indivíduo nunca será plenamente um átomo e que o ideal de autonomia que almejamos só existe em um mundo de trincheiras que nos separam de uma vida mais plena, em conexão com o todo.

Atualmente o social e nossos valores são a maior barreira para a continuação da vida na Terra e isso nos apavora, porque não conseguimos imaginar uma vida que transcenda os valores que o social estabelece e o indivíduo não possui rituais que o guie nesse percurso de identificações, logo, o individuo não possui substância, o que o torna incapaz de integrar a coletividade de forma crítica. Isso nos impede de ser responsáveis, íntegros, e nos sequestra em nome de imperativos que não podemos relativizar.. como a economia, o poder e esses grandes nomes que assombram aqueles que querem que a vida signifique mais do que esse bla bla bla que nos é vendido como a única alternativa possível de se viver.

Só um exemplo... Todos os dias ouvimos que a bolsa está em alta ou em queda de tantos porcento, isso significa o que para você? Você entende o que isso significa? Eu conheço pouquíssimas pessoas que investem na bolsa e mesmo elas não entendem muito bem o que cada índice econômico significa, mesmo a tal da inflação.. o mantra que ouvimos a cada segundo. Ninguém se preocupa em explicar esses índices, em entender o real reflexo deles em nossas vidas... mas todos os meios de comunicação os enunciam como um sacerdote invocando o fogo do inferno, por que? Porque não precisa ser explicado, não precisa fazer sentido, pois essa informação se destina a seres que não fazem sentido.

E ainda nos cremos como o pináculo do desenvolvimento histórico, seres livres da superstição. Os antigos entendiam que a superstição é parte do humano e faziam uso dela para entrar em contato com o sagrado. Afinal, não existe maneira de separar da vida as coisas ruins e só ficar com as boas.

Por isso, antigos eram eternos.




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