Um Louvor ao Boteco



Caminho devagar em direção ao ponto de encontro e observo o horizonte líquido de vermelhos róseos, sinto o perfume doce de uma ninfeta arder meus pensamentos e me chega a ideia: a noite que se avizinha promete. Isso me desperta uma espécie de gratidão, pois não entendo a razão dos deuses terem me presenteado com uma intuição tão viva... sempre soube das coisas antes que acontecessem e tenho a impressão que o próprio deus Mercúrio é implacavelmente pontual, o que para nós brasileiros significa que ele sempre chega antes.

Adentro o boteco e sento em uma mesa ao canto, colado à parede. Observo as pessoas bebendo e conversando, os garçons caminhando com um elegância apressada entre as mesas, carregando pedidos, gritando com os chapeiros. Olho o relógio e sinto um alívio recorrente, de novo cheguei exatamente no horário combinado. Faço isso não por gostar de ser pontual, mas esperar a pessoa amada sempre me preencheu de um prazer imaginativo que aprendi a apreciar depois de muitos atrasos. O garçom trouxe o cardápio e perguntou se queria alguma coisa, eu fiquei na dúvida, não sabia quanto tempo iria esperar. Peço uma Original, e recebo aquele copinho americano opaco - o meu escudeiro de bate papo.

Depois do primeiro gole ficava imaginando ela parada na entrada, com um rosto apreensivo, preocupada por estar atrasada. Maquiagem e um vermelho nos lábios e os olhos felinos por um risco agudo traçado sobre as pálpebras. Quem sabe, um hálito de chiclete de menta, ansiosamente mascado? Que roupa ela estaria vestindo? O que estaria pensando? A cada segundo ela se aproxima... e é esse o raro momento que o tempo cai sobre minhas costas como uma cachoeira que me massageia, amiga.

Quando repouso minhas mãos sobre a mesa, sinto-a grudenta. Peço ao garçom que passe um pano úmido e alguns segundos depois penso em renovar o pedido, mas percebo que ele já havia limpado a mesa, nem vi. Alguns copos se esvaziam e eu já me sinto mais leve, o que me faz encostar na parede e soltar um suspiro satisfeito. Tudo neste lugar era tão ordinário e comum, não possuía nada de especial, azulejos brancos encardidos, pessoas falando alto e uma iluminação amarelada, tudo era bem familiar, até aquele cheiro azedo de cerveja que brotava do chão de todos os templos etílicos - o "cheiro dos sacrifícios". Tudo era diariamente renovado - era como o templo móvel levantado todos os dias pelos Hebreus no deserto, os garçons eram os levitas e todos os casais e amigos cumpriam a função sacerdotal de se embriagar.

Quando ela chegasse, anunciaria aos seus ouvidos o quanto eramos privilegiados. Ela, sem entender, me perguntaria: por que? Olhe ao redor linda... Quantos casais calados, casais amigos, casais enfadados, casais acostumados - com o olhar distante, enquanto nós nos desejamos com todos os fôlegos. Anunciaria o que Mercúrio, diligentemente, já havia me anunciado: daquelas pessoas enfileiradas nas mesas, eramos o casal escolhido para perpetuar os amores e as esperanças que todos os tempos louvaram, eramos por uma noite o que todos ali desejavam ser, ou o que eu mesmo desejei pelas termináveis noites de boteco. Por algumas horas, encarnaríamos a razão de ser de todo aquele esforço ininterrupto.        

O desejo dos amantes torna o boteco encardido o melhor lugar do mundo, a Itaipava vira Baden Baden, o Forró risca faca que toca estridente soa como um Tom Jobim ao vivo. A cerveja que cai na perna não é nada, e a chuva que nos faz beber de pé do lado do banheiro nem sequer altera o humor
dos amantes. Essa é a poesia concreta que transforma o boteco em sua função sagrada, inalcançável para os não iniciados. O amor é o re-ligare que consagra as mesas amarelinhas, os frango a passarinhos e as fritas ao serviço dos deuses, sem esquecer, é claro, daquele banheiro de canto de parede em baixo da escada que só conseguimos entrar de lado.

Quando ela chega um sorriso me brota no rosto e me levanto para abraçá-la.

Jesus disse "se queres me seguir, venda tudo o que tem", e isso continua verdade. Talvez seja isso que torne o boteco o lugar dos amantes, daqueles que deixaram tudo o que tinham. Ali é o lugar em que nada importa mais - está fadado a ser o melhor lugar do mundo.


Comentários

  1. Muitas ideias que podem mudar o rumo da historia surgiram nos botecos, ideias que mudarão o rumo de nosso país vem surgindo nos botecos. O boteco é amor, política, é guerra, é torcida. Ótimo texto.

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