Qual é o sentido disso tudo?

A esfinge testando o pessoal a caminho de Tebas - Pintura de Ingres

Dizer o que pensamos nem sempre é fácil, uma vez que o que acreditamos, sentimos, amamos, nem sempre nos é disponível pelas palavras. Esses sentimentos estão lá, mas não conseguimos trazê-los à luz, eles se recusam – rebeldes. Por isso, nos acostumamos a falar somente sobre o que está ali, exposto ao céu do meio dia... coisas sobre as quais todos concordam, pacíficas, obedientes.

Esse discurso pacífico em torno do qual tecemos nossas conversas mais comuns é como um espelho d’água diante do qual nos colocamos todos os dias. As pessoas se dizem, contam suas histórias coloridas, suas piadas, seus medos... flutuamos vagarosamente sem perceber que existe uma distância entre o que dizemos e onde realmente estamos.

 - Por favor, poderia me informar onde fica a secretaria?
 - Sim, claro! Fica logo ali, no outro bloco.
 - É difícil chegar lá?
 - Não, mas eu te acompanho, eu estou de bobeira aqui mesmo.
 - Não precisa! Só me diga como eu faço que eu vou sozinha.
Começo a andar e finjo que não entendi a última frase. Ela me acompanha e eu pergunto de onde ela vem, o que estava fazendo perdida nos corredores da faculdade. Quando chegamos, descobrimos que a secretaria estava fechada.
- Puxa vida! Você deu azar, ela acabou de fechar.
- Não tem problema, outro dia eu volto aqui. Obrigada!
Ela sorri e se vira seguindo seu caminho.
- Bom, a secretaria está fechada, mas existe uma cantina aqui perto... Aceita um cafezinho?

Aqui, a pergunta boba “Aceita um cafezinho” é lançada contra o espelho d’água com a pretensão de descobrir onde estava aquela linda garota, até então perdida. Quebramos o fluxo natural das coisas para, por um momento, perguntar: onde você está? Podemos receber uma negativa, mas a pergunta ecoa pelo infinito do médium, perturbando aquele outro universo e é admirável contemplar aqueles milissegundos em que a pessoa é requisitada em sua totalidade. A superfície se perturba – este é o momento em que a ilusão se mistura com o corpo e a dicotomia real - virtual resvala em uma resposta, hesitante.

Uma pergunta que eu normalmente lanço sobre as águas é o bom e velho “você acredita em deus?”. Aos poucos as pessoas estão percebendo que eu não me interesso pela resposta, afinal, ela nunca sai de uma variante da fé privada que parte do “não acredito(não nasci com isso)” para um “acredito em um deus cool”, me interesso, na verdade, por aquele olhar perdido de quem desistiu de encontrar uma resposta, ou aquele engenhoso esquema de explicações, tipo...qual a diferença entre um ateu e um agnóstico, sem contar o esforço de recusar a religião, coisa que cheira o seu oposto. Só não me anima os "não praticantes", pois é uma coisa um pouco sem vergonha dizer-se um paradoxo sem se escandalizar! Esses são os verdadeiros terroristas da religião.


O quanto estamos dispostos a suportar por nossas questões? Os budistas gostam dessas perguntas teste e as usam há milhares de anos. Um andarilho aparecia no templo e permanecia no portal por meses, enfrentando frio e tempestades apenas para aguardar o mestre e lhe fazer a pergunta... Algo do tipo: qual é a forma da sombra da chama de uma vela? Qual é o som da palma de uma mão? Aqui, percebemos que existe um cuidado lapidar com o forjar da pergunta, pois a têmpera da pergunta indica a precedência, o lugar de onde se pergunta. Existe uma anedota de um discípulo que constantemente perguntava ao mestre se havia sido iluminado, ao que o mestre respondia um simples “não”. Muitas perguntas depois, o discípulo inquieto pergunta ao mestre como ele poderia ter certeza disso, ao que o mestre responde: pois continuas fazendo esta mesma pergunta estúpida. 

No relato de Eiji Yoshikawa, o grande samurai Musashi reencontra um um sábio monge depois de dez anos. Decidido a obter uma resposta do monge, Musashi passa vinte dias seguindo-o, dormindo ao relento e quando o samurai encontra o monge, ele não consegue sequer formular uma pergunta. De tanto ser escorraçado, Musashi o odiava, "Bonzo maldito!" repetia para si mesmo. Depois de lhe lançar as questões mais importantes de sua vida (Se abandono o caminho, caio num precipício. Se tento subir, não encontro forças. Estou preso no meio do despenhadeiro e me debato, tanto no caminho da espada como no da vida...Que devo fazer para me livrar desta dúvida, desta inércia em que me encontro?), recebeu como resposta um "nada existe". O melhor de uma questão se estrai de sua sustentação, e não de sua resposta. Na peregrinação pelo monge, Musashi encontrou vários sinais importantes e conseguiu encontrar seu caminho, mas isso só foi possível porque ele sustentou a questão, o que não acontece normalmente, afinal preferimos aceitar a primeira resposta que encontramos pelo caminho. 

Nós usamos as palavras tão indiscriminadamente que não percebemos que elas possuem uma dinâmica própria. Quando forjamos uma pergunta, um enigma, um teste, estamos como que acendendo o pavio de um busca-pé, deixando as palavras ricochetearem pelos redutos do ser. O que nos permite perceber as distâncias ocultas sob a concordância, os vazios que rodeiam o entendimento.

Não podia encerrar sem lembrar a história de Perceval, que depois de contemplar toda a majestade da cerimônia do Rei pescador, acabou perdendo a oportunidade de restaurar a saúde do rei, pois absteve-se de perguntar a razão daquela cerimônia. Perceval estava morrendo de curiosidade, mas por educação manteve silêncio, não queria parecer um tagarela. O castelo desapareceu, e Percival passa longos anos a procura do Rei Pescador para, finalmente, lhe restaurar a saúde e o reino propondo a pergunta prometida. Quanto tempo perdemos por manter silêncio diante da realidade?

Em um momento em que olhamos ao nosso redor e percebemos todas as coisas indo mal, perguntar é a única forma de medir a distância que nos separa de um mundo que desejamos. E assim vamos errando, para acertar.

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