Recordações da minha casa dos mortos

Ilustração de Goeldi para a obra Recordações da Casa dos Mortos

Vou lhes contar histórias que encontrei em letras miúdas da minha memória. Pensei nisso enquanto lia o Recordações da Casa dos Mortos ontem a noite, achei muito legal aquela ideia de se interessar por um estranho e tentar conhecê-lo, sendo que, mesmo depois de sua morte algo pode permanecer... o narrador encontra trezentas páginas com experiências do cárcere siberiano. Ali estava seu autor vivo novamente em sua história. 

Lendo a obra percebo as peculiaridades do dia a dia dos presos e de como eles se organizam para sobreviver. A cada detalhe percebo uma experiência que reverbera por minhas próprias experiências de cárcere e de quantas vezes estive ali contando paliçadas para organizar o tempo, totalmente alheio ao que deveria fazer de minha vida. Nunca fui preso, oficialmente, mas quando olho paredes geralmente as esmurro de leve e ouço os ecos do impacto. Estar preso é vivenciar a ausência de uma ilusão - de que se é livre.

Em 2004 eu passei em concurso para ser sargento da aeronáutica e meus primeiros dias como aluno foram uma especie de fornada de cerâmica, não era horrível, mas eu não tinha escolha e isso me corroía por dentro. Ficava em filas o dia inteiro, coisa entediante até a medula. Acordava lá pelas 5:40 e ia fazer a barba, olhava o banheiro já lotado de pessoas catarrando e ficava numa fila de torneira. Enquanto fazia a barba ficava olhando aquela marcha de pigarros escorrendo em minha frente e me perguntava: porque todos pigarreavam assim? Achava aquela coincidência algo admirável. Sentia que aquelas oitenta e tantas pessoas, vindas de todos os cantos do Brasil, tinham hábitos que iam se assomando de uma forma insuportável... ligavam ventiladores nas noites frias, usavam desodorantes em todas as partes do corpo, outros tomavam banho de manhã, tarde e noite, pigarreavam de manhã, depois do almoço e antes de dormir. 

De início aprendemos uns truques para manter a roupa de cama em ordem. Prendamos tudo com alfinetes e dormimos por cima dela já arrumada, assim, quando acordava tinha apenas o trabalho de tirar o forro e jogar dentro do armário. O momento de acordar era cronometrado, tínhamos que nos arrumar, fazer a barba, tirar a cobertura da cama, colocar tudo dentro do armário e trancá-lo. Depois, tomava um café e entrava em forma na frente do esquadrão. Daquele pátio via o nascer do sol e tinha um segundo de paz. Deveríamos marchar cantando um hino qualquer dos vários que aprendemos, alguns eram mais preferidos que outros, certos hinos eram adaptados e cantados com mais paixão. O hino da marinha tem um começo empolgante, aí cantávamos quando estávamos mais animados. 

Quando saí da quarentena visitei o centro comercial da minha cidade e vi pessoas sem farda transitando livremente. Aquilo me fez sentir tão bem que até hoje me sinto um pouco confortável quando vejo pessoas circulando num lugar movimentado.

Vez em quando éramos escalados para o grupo da faxina e havia o xerife da faxina. Esse pessoal tomava café mais cedo e limpava o alojamento enquanto o resto estava no refeitório, logo, era obrigação dessa turma limpar tudo, de banheiros a alojamento em menos de uma hora. O grupo da faxina se dividia em: banheiro, varrer alojamento, varrer área dos armários e dois eram escalados para alinharem os cobertores dobrados de todas as camas com um fio de barbante. Qualquer coisa esquecida deveria ser recolhida e colocada num armário de produtos de limpeza... Estar na semana da faxina era estar na mira dos superiores todos os dias e ter que ouvir em uma reunião de esquadrão um "foi encontrado"... que normalmente significava que o xerife ou o grupo todo deveria perder a folga do fim de semana. 

Toda a rotina era encadeada num automático ritmado pela marcha. Treinávamos vários dias para uma "formatura" e isso é como chamamos aquela coisa bonitinha que as pessoas vão ver no 7 de setembro. Saber que uma formatura se aproximava doía, pois sabíamos das voltas infinitas que teríamos que performar em torno daquele patio de asfalto. Normalmente não ficava bom, e repetíamos e cantávamos. Dependendo do comandante já prevíamos quantas vezes teríamos que repetir. A rotina era repleta de pequenas tragédias e maus encontros, um oficial via você com a mão no bolso e já era. Pediam hinos que não sabíamos cantar, viam nossas botas sujas, aquela barba por fazer, cansei de ver pessoas sendo pegas e humilhadas na frente do esquadrão. Daqui, aprendi que pior que fazer merda é virar exemplo. 

Lembro-me que haviam filas para tudo, fila para registrar, para pegar armamento, para desarmar, para comer, para correr. Descobri que existia um tal de treinar imobilidade e por isso ficávamos parados de pé, sentados, com capacete, sem capacete e fui descobrindo uma capacidade de ficar imóvel que me acompanha até hoje em minhas viagens de metrô. No quartel iniciei meu hábito de ler em filas e de carregar minhas leituras por todos os lados. Aprendi nessa época a dormir de pé, a dormir lendo sem pescar, com os olhos baixos... Um dia meus amigos me falaram que o sargento parou do meu lado e não conseguiu determinar se eu estava dormindo. Outra ocasião falaram para os sonolentos ficarem de pé, eu fiquei, mas dormi mesmo assim. Quando acordava via amigos rindo, me chamavam de "Sonomura". Mais tarde percebi que tomar antialérgicos diariamente e ser um aluno de escola de formação não combinava. 

Uma angústia crescia todos os dias e as noites de domingo eram terríveis, não pelo faustão, mas porque tinha que me arrumar para retornar para o quartel. Pegava um arroz de forno da mamãe e alguns mantimentos para lanchar durante a semana. Chegando, entrava em forma para chamada... haviam chamadas durante todos os períodos do dia. No início das atividades eramos organizados de forma a ter um lugar específico, assim, era só olhar os lugares vagos para saber quem estava faltando. Essa angústia de domingo me acompanha até hoje. 

Um dia havia decidido sair, isso foi no final do primeiro ano. Estava decidido como acredito que um suicida decide seu salto, tudo era um motivo para sair do barco. Agora, é o briefing da tarde, de hoje não passa! E assim foi por vários dias e acabei não pulando. O que me fez ficar? Um dia estava fazendo flexões numa tarde de educação física, lá com todo o meu esquadrão e olhei aquele asfalto e percebi que tudo aquilo ali era problema meu. Andava cansado de viver problemas de outras pessoas, de não ter dinheiro e ali estava eu aguentando aquela rotina doida, mas poderia chegar ao final e fazer o que desse na telha, ir para outro Estado, sei lá... perceber isso foi consolador.

Na época vivia uma fúria, um tipo de pânico, de um não saber a saída e de me debater em minutos de liberdade e exaustão. Parece que nesses momentos existe um uivo interno que reverbera pelo mundo e o que você precisa vem até a você, por vias inusitadas. Frequentava a banca de jornais para ver livros baratos, aquela coleção da Escala com livros feitos de papel reciclado. Via a lista no final do livro para riscar as publicações que já havia lido. Lia autores evangélicos alternativos, graças às indicações de meu pai e conseguia pensar relações entre C.S. Lewis e Freud, Cosmovisões e pós modernismo pela ótica de autores cristãos. 

Tinha a impressão de que tudo acontecia ao meu redor sem ter a menor conexão comigo. Ouvia histórias de pessoas que faziam orgias, fulana deu na lavanderia, irmãzinha sendo afastada da igreja porque se desentendia com o presidente da congregação, e eu lá...falando com Deus. Comecei a anunciar as rotinas na locução para escapar das formaturas. Fiz uma leitura no nosso último semestre no qual eu sincronizei o texto com o tema musical, ficou tão legal que me chamaram depois para regravar... Outro dia fui chamado para ser vice presidente da congregação dos alunos. Lembro do outro presidente me anunciando triste que eu não seria presidente, enquanto que para mim aquilo foi um alívio enorme.

As vezes o destino me permitia encontros. Um dia um amigo me encontrou no banheiro sozinho e falou: é difícil não? Aí começamos a rir e saímos para conversar no saguão depois que as luzes se apagaram. Outra ocasião encontrei uma irmã de outro esquadrão e a vi muito abalada, chorando e comecei a falar para ela das minhas angústias e de como havia contornado, aproveitei que tinha acabado de ler um livro sobre síndrome do pânico e emprestei a ela. Havia um professor de educação física que dava umas palestras ótimas e quando podia ficava papeando sobre filosofia, aquilo me animava o dia. Um encontro foi muito especial nessa época e aconteceu quando estava na banca procurando livros e vi um do Nietzsche, pensei, todo mundo comenta desse cara mas nunca li nada a seu respeito... e assim comprei o Crepúsculo dos Ídolos. Daí em diante não conseguia parar de rir e ler, tudo, que até então era apenas sofrimento, se tornou engraçado. 

Até hoje me perguntam porque eu deixei de ser crente... foi porque eu aprendi a rir com o Nietzsche. 

Lia tudo o que saia dele e fui me tornando mais humano, ao ponto em que esquecia as coisas. Num dos meus últimos dias tranquei o meu armário com a chave dentro e, quando acordei e dei com o armário fechado sai correndo pedindo farda de colegas, coturno e consegui passar um dia sem armário. Nosso armário era nosso mundo, aaaa o meu toddy com leite em pó e granola... guardava nele de livros a cheiros, tudo que podia me lembrar um mundo outro. Tinha o vizinho de armário e várias vezes compartilhamos o que faltava e o que sobrava, sempre tinha alguém revirando suas coisas com o celular ligado como lanterna. Existiam várias espécies entre nós: os atletas, os tarados(os que se excediam em militarismo), os vendedores, os mulambos, os x9, os gaúchos, os safos, os cabos velhos, o pessoal dos correios, os aleijados(sempre dispensados), do maleiro, os crentes, o pessoal da comissão de formatura, o padrão(super militar), o 01... tinha um povo que era xerife da faxina sempre, só pra fazer um extra. 

Por isso quando eu leio o Dostoiévski eu não consigo deixar de lembrar da minha época de aluno militar. Existem mais histórias, mas esse formato não ajuda. Talvez eu me inspire no "Recordações" e escreva um livro, acho que renderá boas gargalhadas.        
         

           

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