Cozinhar é a mais velha religião de todos os tempos


Certas coisas me tocam e me fazem chorar sempre. É engraçado, mas não sei por que eu choro assistindo a série "Cooked". Chorei no primeiro episódio, coisa que me fez ficar sem graça e assistir os outros sozinho. Talvez eu só chore quando assista coisas sozinho. Fico ali absorvido, acompanhando os personagens, suas vidas e dramas, o que acaba me envolvendo também. Agora, por que diabos uma série de culinária me faria emocionar às lágrimas?

Utilizando os quatro elementos (fogo, água, ar e terra) como temas centrais, o autor procura explicar as origens da arte culinária em seus diversos matizes culturais. O ponto aqui não é explicar como as diferentes culturas cozinham coisas gostosas, tipo...nossa! como os italianos descobriram a lasanha? A pegada da série fica muito clara no primeiro episódio quando Michel Pollan reúne amigos para saborear um porco assado na brasa que ele prepara durante a exibição do episódio. Junto com imagens captadas no meio de uma tribo aborígene na Austrália, ou em uma pequena cidade americana, o autor indica que as mais variadas perspectivas são facilmente reunidas em torno de fogueira e de um assado. Diante da fogueira não existiam mais escravos, crianças, velhos, brancos, ricos ou pobres... todos poderiam se deliciar da magia do fogo e provar uma deliciosa carne assada.

Ali fiquei boquiaberto, sentindo o cheiro da madeira queimada, lembrando das vezes que acendi uma fogueira e assei batatas com meus amigos. Como olhava hipnotizado as chamas dançando pelos troncos secos. Sentia fome junto com a expectativa de em breve poder tirar aquela batatinha, salgar e saboreá-la. Essa experiência besta põe no chinelo anos e anos de dias cinzentos vividos sob o signo da grande cidade. Me faz perguntar porque nossas experiencias precisam ser tão pobres de vida e significado. Existe, caro leitor, amizade mais profunda do que aquela compartilhada diante das chamas de uma fogueira e de seu silêncio? O que nós estamos perdendo quando paramos de cozinhar, quando deixamos de buscar ingredientes e de conversar em torno do fogo?

No segundo episódio, chorei quando vi uma comunidade da Índia que se reuniu por direção de um líder religioso para cozinhar refeições para toda a população que não tivesse acesso a comida digna. A cozinha seguia os padrões religiosos de abate dos animais e preparo dos pratos e todos os cozinheiros eram voluntários. Quando contemplei as pessoas se organizando em torno desse ritual e de como elas eram vivas e participantes da comunidade em que viviam, percebi o quanto estamos mortos enquanto sociedade. O quão maravilhoso é quando a religião assume sua posição e engaja todas as fibras de seus membros no sentido de tocar as vidas daqueles que carecem no meio da comunidade.

A industrialização sem limites nos diz que cozinhar é difícil e trabalhoso - compre pronto. Os ingredientes frescos estão ficando mais caros e as refeições prontas estão à mão, só ligar o microondas e pronto. Isso sem falar dos fast foods da vida, com pratos não muito caros e cheddar a vontade. Não temos mais tempo para cozinhar! Temos que trabalhar e produzir. Quando não estamos trabalhando estamos cansados demais para viver, quem dirá ir ao supermercado, comprar coisas e cozinhar. As taxas de obesidade e doenças ligadas à má alimentação cresceram na medida em que deixamos de cozinhar.

Quando Michel acompanha um produtor de trigo e seu percurso desde a plantação até o preparo do pão, fica claro que todos na comunidade estão conectados pelos vínculos gerados na produção do alimento e que isso ajudou a organizar a comunidade. Os laços que conectam as pessoas não são espontâneos, mas são lentamente elaborados pela interação entre a natureza e cada cadeia do processo de produção do alimento. Uma colheita ruim pode elevar o preço do trigo, elevando a demanda por outras fontes e encarecendo um produto do qual toda a população depende, causando revoltas populares, não sendo uma coincidência que todas as revoluções de que temos notícia possuem uma relação com a escassez de alimento.

No último episódio eu chorei quando uma freira (Phd em microbiologia) disse que a experiência de fazer queijos era para ela algo religioso, que contemplar as diferentes culturas bacterianas aflorarem e morrerem, deixando atrás de si um delicioso queijo era algo que apontava para o mistério da relação entre a vida e a morte. Sendo isso algo que a inspirava e a maravilhava, uma verdadeira experiência religiosa. Não é estranho perceber que todo o sagrado sempre esteve relacionado à fermentação e a produção de bebidas e alimentos, como a cerveja ou o chocolate.

Aqui vai o pedaço de um canto que pode ter mais de três mil anos:

Os pães já estavam assados.
Os pratos com bom tempero,
O tempo pouco avançara,
Mal um momento se fora,
E a cerveja presa nos cascos,
Bateu, cantou, sussurrou:
"Venham heróis, venham me pegar,
Quero alegrar seus espíritos,
Fazê-los cantarem sábias canções,
Que me honrem com louvor,
Cantem a cerveja imortal!"

Louhi procurou um menestrel,
Um bardo mago e cantor,
Para a cerveja bem louvar,
Com canções de honra e exaltação.
Antes do bardo veio um salmão,
Também veio um lúcio do mar,
Mas o salmão não tinha talento,
E o lúcio não tinha sabedoria;
Dentes e guelras não nasceram
Para cantar lindas lendas.

Buscaram outro cantor,
Mago menestrel, encantador de cerveja,
Para a bebida dos heróis,
Decantar em canções alegres;
Veio um menino cantor;
Mas ele pouco sabia,
Louvar a cerveja não pôde;
Meninos só tem perguntas,
Não falam com sabedoria,
Lendas antigas não cantam.

Mais forte, a cerveja presa
Dentro dos arcos de cobre,
Trancadas pelas torneiras,
Ferve, espuma, canta e murmura:
"Se não trouxerem um cantor,
Um que cante minha nobreza imortal,
Que cante o louvor que mereço,
Os arcos de cobre arrebento,
Os barris vou explodir;
Não servirei aos heróis
Sem o louvor de um cantor".

(trecho da runa XX da saga Finlandesa Kalevala)

Hoje, pessoas bebem cerveja, comem chocolate e queijo e conseguem dizer que são ateus. Elas dizem que não nasceram com esse negócio de religião. Acredito que sagrado está ali, no calor silencioso dos frutos mortos que ofertam sabores e sensações mágicas - inexplicáveis. Como não ser grato pela vida e pela existência quando nos alimentamos e bebemos coisas tão gostosas? Como não sentir o sagrado quando abrimos o forno, inebriados pelo cheiro de pão fresco? Dirão: isso são bactérias!! Elas produzem essas coisas. Agradeça às bactérias! Eu sou metade bactérias, inclusive, mas não peço a você que agradeça a mim, gostaria de indicar que o universo explicado é o menos maravilhoso de todos, e o mais covarde, diga-se de passagem.

Engraçado que desenvolvemos a produção destes maravilhosos alimentos sem ter o menor conhecimento de microbiologia, seria isso fé ou "tentativa e erro"? Fazemos as coisas limitados pelo conhecimento que temos delas, para logo em seguida nos alienar pelo consumo industrializado, posição que nos deixa duplamente exilados da vida. Talvez, por isso tenha chorado assistindo Cooked, pois percebi que o processo de cozinhar nos conecta com a natureza e com a vida, coisa que tem sido muito raro em meu dia a dia suburbano.


 




    

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