Meu café distopico

Deus, o Pai de Cima da Conegliano, 1515

 - Como você conseguiu frear o aquecimento global e controlar o desenvolvimento humano ao ponto de contemplarmos a natureza retornar aos seus antigos habitats? Como você salvou o planeta e a humanidade da 6ª extinção? Justo quando tudo parecia perdido...

 - Sente-se, vou explicar. Quer um café?

 - Sim, aceito.

 - O cheiro do café me ajudar a refrescar as ideias. Começo lhe falando sobre o meu querido pais, o Brasil. Apenas um brasileiro poderia fazer o que fiz e o senhor já entenderá o porquê disso.

- Continue, tem açúcar?

- Aqui. Bom, no Brasil sempre tivemos uma dificuldade para entender a política e a esfera pública. Tudo me parecia uma grande carcaça burocrática, nada eficiente e totalmente infiltrada por demandas de grupos que não contemplavam a população. A política sem ideais e valores era apenas escombros aguardando a destruição. O que propus à época foi reunir um grupo de programadores, coisa que temos da melhor qualidade no mundo, e desenvolver um algoritmo que substituísse os poderes Executivo e Judiciário, atualizando o Legislativo para um órgão de design algorítmico. Tudo para que as pessoas não precisassem mais desperdiçar suas vidas prestando contas à uma instituição fictícia.

 - Que o Executivo não fosse o dos melhores, tudo muito normal, mas por que extirpar o Judiciário?

 - Certas ficções aderem com muita força ao imaginário popular, ao ponto das pessoas deixarem de acreditar em Deus, mas continuarem acreditando no código penal... por exemplo. Quando decidi quantificar os impactos da criminalidade e do sistema carcerário ficou claro que a punição não valia a pena para a sociedade, era um esforço homérico para manter uma ilusão de justiça que na pratica não fazia diferença nenhuma.

- Destruir um ideal de justiça não poderia despertar o caos e a barbarie no seio da sociedade? Pois se a impunidade impera, nada nos impediria de sair por ai roubando bancos e matando desafetos.

- Sim, esta é a primeira ideia que me veio a cabeça. Acontece que algo não batia, pois veja você que punir é basicamente impôr um sofrimento como resposta à algo que chamamos crime, e essa punição deveria ser algo proporcional. Acontece que isso, na pratica, era impossível, sem contar que muitas pessoas simplesmente gostam de sofrer, logo a questão penal gira em torno de uma economia do sofrimento que não se sustenta diante dos diferentes tipos de vidas e indivíduos que compõem a sociedade. O sofrimento sempre existiu, desde que o primeiro ser vivo brotou neste planeta, agora, a punição é um uso do sofrimento que nós desenvolvemos e refinamos para servir a sociedade. Este uso precisava ser revisto. Isso sem contar que conduzir pessoas se tornou uma tarefa muito mais fácil depois do advento das redes sociais.

- Gostaria de insistir na questão da justiça, como extinguir a punição sem lançar a sociedade no caos? Não perdemos também a noção de bem e mal? Não tornamos iguais o criminoso e o cidadão de bem?

- Minha solução se baseou na ideia de Karma, por isso meu algoritmo jurídico recebeu esse nome. Decidi por elaborar um sistema que avaliasse cada indivíduo de acordo com seus efeitos sociais e que respondesse imediatamente a qualquer interação de acordo com seus desdobramentos no tempo. Aboli o conceito de crime e, a partir do start, Karma passou a responder em tempo real à todas as interações cobertas pela nossa rede, de forma que se um individuo ameaçasse a continuidade dos outros, nosso sistema simplesmente o isola e o elimina. Assim como indivíduos que proporcionassem o bem estar da comunidade seriam favorecidos. Tudo isso com uma margem de erro de 7%.

- O poder de matar um indivíduo não é insano? Isso me faz lembrar os genocídios da 2ª Guerra mundial.

 - Veja que nossa margem de erro é muito melhor do que o antigo sistema judiciário apresentava. E que no longo prazo, utilizando uma larga base de dados, se tornou praticamente impossível escapar ao Karma. O que chocou a população no início foi perceber que os crimes não mais aconteciam, isso foi algo difícil de administrar, pois presídios lotados e muros altos sempre fizeram parte de nosso imaginário. Tínhamos a impressão de virtude pelo contraste. Isso aconteceu quando equalizamos as camadas menos favorecidas socialmente, os ricos perderam sua sensação de riqueza. Você havia perguntado da morte né? Desculpe, acabei pulando sua questão.

- Fique a vontade, estava aqui me lembrando das favelas virtuais projetadas nas janelas dos veículos para manter os ricos dentro de sua margem de sanidade. Agora isso faz mais sentido, nunca entendi porque tanta miséria em nossas realidades virtuais! Certos hábitos nunca mudam.

- Deixe-me falar da morte. Isso antes era um tabu que eu nunca entendi completamente, o que eu fiz foi instrumentalizar a morte como um recurso do meu sistema econômico. A previdência era algo muito irregular, assim decidimos que seria muito mais razoável estabelecer um período de vida adequado a cada pessoa, isso seria interligado com Karma e todos os indivíduos estariam sob administração desses algoritmos, caso sua margem expirasse ou seus atos se chocassem contra as diretrizes, esse indivíduo seria encaminhado para uma estação de reciclagem biológica. Com isso reduzimos populações e mantemos um nível suportável de vida humana em nossas cidades. Hoje, realizamos um genocídio por dia e isso é perfeitamente normal.

- Isso não é poder demais? Em mãos erradas...

- Diante de uma iminente extinção em massa tivemos que tomar medidas mais drásticas, certas ilusões como o valor da vida tiveram que ser relativizadas. Relativizamos a ideia de "Homem" quando enviamos nossos representantes para os mais diversos biomas e alimentamos uma base de dados imensa, de forma que nosso último algoritmo, que chamo Deus, pudesse gerenciar todo o desenvolvimento do planeta. Isso foi a única alternativa possível numa época que o Humano não conseguia ser relativizado, onde os imperativos do mercado não possuíam limites. Dizem que Deus tinha morrido, talvez isso tenha deixado um vazio grande demais, algo que a sociedade não conseguiu superar. O que eu fiz foi ressuscitar Deus como um algoritmo e dar a sociedade uma possibilidade de alteridade que ela não mais vislumbrava.

- Deus já foi invadido por algum hacker? Imagina se Deus se torna um gênio maligno!?

- Sim, várias vezes. Deus é um software aberto, mas todos os prejuízos estão dentro de uma margem aceitável. Sem contar que Deus desativou todas as armas de destruição em massa e parou todas as operações financeiras que não fossem adequadas à manutenção de um nível de vida aceitável para a maioria da população, coisas impensáveis antes dele. Mantemos Deus em constante atualização, utilizando uma arquitetura de dados que "sobe" informações dos mais diversos meios, inclusive redes sociais. No fundo, Deus acabou se tornando algo meio auto ajuda, mas podemos melhorar isso.

- Sabe que com o tempo, passei a acreditar em Deus novamente!? É muito engraçado como as coisas acontecem assim, tão prontamente, que tenho a forte impressão que Deus existe, aquele outro Deus..o que os antigos reverenciavam. Um dia ultrapassei o farol vermelho e recebi uma multa do Karma, foi tão consolador. Engraçado pensar que antigamente milhares de pessoas faziam mal o que Deus e Karma fazem instantaneamente, sem uma gota de suor.

- Trabalhamos para proporcionar a todos a clara impressão de Deus. No mais, gerenciamos a sociedade como um grande conjunto de ficções. Agora, nossa meta é trabalhar para transformar ficções em verdades. Quando a maioria das pessoas acreditarem em Deus, saberemos que estamos chegando lá. Recentemente estamos aperfeiçoando um pacote para privar um coeficiente de pessoas da cobertura de Deus, para que nossos cidadãos aprendam a não acreditar tanto, pois enxergamos a dúvida como uma virtude. Isso sem contar que algumas pessoas conseguem viver voluntariamente sem Deus, algo que ainda não conseguimos explicar. Os antigos chamavam isso "fé".  

- É, apenas lamento ter apenas mais dois meses de vida. Gostaria de acompanhar essas mudanças um pouco mais. O senhor teria alguma dica de um lugar bem legal pra visitar antes de ser reciclado?

- Tem um lugar chamado Olímpia, bem legal pra curtir os últimos momentos. Água quente é ótimo pra relaxar. Sabia que antigamente as pessoas não sabiam o dia da morte? Hoje parece algo tão óbvio...

- Hoje temos tantas opções, mas não saberia o que fazer se tivesse mais tempo de vida. Acho que não existe algo melhor do que viver o tempo proporcionado por nossas escolhas. Karma não muda meu tempo já há vários anos, isso me permite organizar muito bem minhas despedidas e meus negócios. Minha família não terá do que reclamar.

- Morrer por acaso ou velho devia ser terrível. Isso continua acontecendo, mas são raras exceções. Após a morte, a nossa time line estará lá para todos acessarem, inclusive, Karma utiliza isso para oferecer alternativas existenciais aos seus descendentes. Morrer se tornou apenas uma realocação de dados. Muito melhor não?

 - Sem dúvida, gostaria de poder conversar mais. É uma pena, tenho que partir.
    Muito obrigado pelo seu tempo.

- De nada, eu que agradeço sua companhia. Deus te acompanhe!

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