Podemos escolher odiar? Carta ao "homem de bem"

O que nos torna homens de bem? O que nos torna diferente dos bandidos? Será que um bandido é uma pessoa que, entre fazer o bem ou mal, optou pelo mau caminho? Seria a vida um grande jardim do Éden no qual somos testados e classificados em bons ou maus? Depois viria o que? O céu de um condomínio fechado com duas vagas na garagem para os bons e um presídio para os maus?

Essas perguntas delineiam um pouco do imaginário que tenho visto em vídeos pela minha time line comentando a atual crise prisional. Videos do Major Olímpio revelam bandidos fazendo atrocidades com "cidadãos de bem", questionando o que deveríamos fazer com essas pessoas, implícito está a mensagem... "matar, matar, matar". Sentimos raiva vendo uma pessoa parar uma moto e sequestrar um pai de família deixando seu filho correr sozinho em socorro do pai, ou um motoqueiro jogar uma mulher com o filho no colo ao chão, e rapidamente se desfiam milhares de comentários aplaudindo a violência policial, afinal esses bandidos não deveriam existir, deveriam ser deletados, excluídos da sociedade. Por que? Porque sentimos ódio... queremos que eles sejam deletados(morram).

Por isso fica fácil entender porque as condições nos presídios são tão insalubres, afinal, aquilo ali é apenas uma lixeira humana, um entreposto entre a existência e a desintegração. Como poderíamos regenerar algo que odiamos? Algo que nos agride e nos priva de nossa segurança deve ser extirpado da sociedade, pois entendemos que o crime manifestou o que a pessoa invariavelmente é, sua essência bandida, por isso, imutável. Em nosso imaginário a liberdade de escolha é apenas um indicador da natureza, um sinal de nossa matéria que aponta se somos excelentes cidadãos de bem ou bandidos. Por isso, dizem que pobres podem ser pessoas de bem, afinal eles podem escolher entre trabalhar e estudar para conseguir uma vida melhor. Os bandidos, segundo o filho do Bolsonaro, são pessoas que escolheram um resultado rápido, que não queriam sofrer o dia a dia do trabalhador pobre, mas optaram por um salário alto sem ter que se dedicar para tal. Para ele, deveríamos ter mais presídios, investiria, se possível, bilhões para ter mais presídios, tipo EUA, coisa top. Continuando sua retórica, deveríamos também mandar a ONU catar coquinho e os direitos humanos também. Nosso bandido não é igual ao bandido Europeu, aqueles merecem direitos humanos, os nossos não.

Isso é o que acontece quando um conjunto de valores irrefletidos (geralmente um cristianismo de bolso) encontra o mundo das redes sociais, o universo on line, onde podemos deletar contatos desagradáveis com um ligeiro movimento de nosso polegar. Qual nosso espanto quando contemplamos o real e percebemos que ele vem largamente mimetizando nosso imaginário virtual, onde bloqueamos grandes massas renegando-as à marginalização total.. não apenas econômica, mas existencial. Esses enormes contingentes estão excluídos de qualquer substância cultural, de qualquer nutrição subjetiva ou afetiva. As pessoas pobres são semelhantes aos lugares que habitam, normalmente devastados e poluídos por toda sorte de dejetos, lugares onde a natureza é igualmente devastada e árida.    

Certa vez, acompanhando uma aula em uma ONG em uma região carente de São Paulo, notei que um adolescente estava exalando álcool. Durante a aula uma educadora começou a conversar com ele e ficaram um longo tempo dialogando. Ao fim, ela me disse que o adolescente havia sido recolhido e passado a noite apanhando da polícia e que naquele momento apenas queria comprar uma arma e matar policiais. Este jovem, provavelmente irá se tornar um vídeo das infinitas correntes que circulam por aí engrossando nosso imaginário da luta contra o crime. Agora, por que este adolescente estava em um bar altas horas da noite? Hum...Coisa boa não era right? Assim, ele merecia apanhar a noite inteira também né? Outras perguntas possíveis...Essa conduta policial seria aceita em outro bairro? Por que este jovem usa a mesma roupa em todas as aulas? Por que ele chorou durante a conversa? Por que eles precisam ir à ONG para comer?

A retórica do livre arbítrio é uma postura de má fé, pois estivesse Adão e Eva em uma favela, provavelmente não teriam nem o fruto proibido para comer.

Quando uma autoridade pública manda o pessoal dos direitos humanos catar coquinho eu percebo que voltamos ao momento em que os direitos humanos foram instituídos, lá pelos idos de 45, portanto, pós Segunda Guerra. Foi nesse momento da história que um povo foi excluído da dignidade humana e incinerado em campos de extermínio, e, para repetirmos isso, precisamos denegrir esta conquista pelo ódio. Para que possamos excluir esses contingentes da existência com mais tranquilidade, nada melhor que transformá-los em algo não humano - o bandido (Hitler aproveitou outro movimento da época, o tal do antissemitismo). Transformar o crime em uma escolha resolve a nossa responsabilidade social, e a partir daqui, bom.. bandido bom é bandido deletado. Isso é o máximo que nossa engenharia social é capaz de fazer, reproduzir uma prática execrável em todo mundo civilizado. Isso, os alemães bem sabem, não é algo impossível de acontecer.

Entendo que liberdade não é um teste, não é um indicador de maldade. Liberdade é amadurecimento, é o fruto de um longo percurso de nutrição e investimento afetivo, coisa que a maioria de nós não teve acesso. Outra coisa generosamente ofertada é o ódio e este sentimento não nos permite respirar, muito menos ser livres. Aquele adolescente não terá escolha a não ser odiar seus agressores, que provavelmente não tiveram escolha senão odiar aquele adolescente pobre, pois policiais são constantemente mortos e emboscados por jovens nessas condições. Aqui temos tudo, menos liberdade. O ódio planifica a vida, a torna clara como um alvo. Ela pode ser inoculada em outros, contamina quem sofre a violência e quem dá o like no vídeo.. O ódio nos torna previsíveis, mecânicos, e precisamos disso para continuar controlando a sociedade, para torná-la previsível.

Paremos de fermentar o ódio. Paremos de desperdiçar vidas e paremos de excluir pessoas da dignidade de serem vivas e humanas... amém.

*Sugestão ao olímpico homem de bem: Se você tem mesmo livre arbítrio, poderia você escolher não odiar?






      

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