Van Gogh encontra sua posteridade

Numa bela noite de verão, um casal testemunha um homem cambalear pelas ruas sem saber onde está. Este homem deixa um rastro de sujeira por onde passa e parece ter sido enterrado vivo!

Quando lhe perguntam quem é, ele responde que se chama Vincent. Eles repetem a pergunta um pouco displicentes... qual é mesmo o seu nome senhor?

- Vincent! Vincent van Gogh, vocês poderiam me dizer onde estou senhora.
- Você está em Auvers-sur-Oise senhor "van Gogh" hahahaha
- Como posso encontrar meu irmão? Ele se chama Theodore... vocês o conhecem?
- O senhor pode visitá-lo no cemitério municipal.

A essa altura, van Gogh faz uma cara de desentendido e segue o caminho da praça central para sentar e se orientar um pouco.
- Acho que estou tendo outra crise... como pode ter sido tão forte, a ponto de eu me sujar tanto e perder a noção da realidade! Meu Deus! Theo vai me matar quando descobrir.

Van Gogh caminha um pouco aturdido pelas ruas de Auvers-sur-Oise sem se importar muito com as diferenças que percebia na fachada dos prédios ou no vestuário das pessoas, pensando estar em um surto psicótico.

Vagando absorto pela cidade, ele se depara com uma exposição de artes com pinturas suas em grande formato e títulos que enalteciam seu nome e o valor que suas obras haviam alcançado. Um pouco incrédulo, ele timidamente adentra o recinto e desperta a atenção dos seguranças que, imediatamente o arrastam pelo salão e o põem para fora. Emudeceu e não conseguiu dizer uma palavra, pois estava completamente transtornado. Definitivamente tudo aquilo não poderia ser mais que um delírio! Como podiam suas obras, algumas até que não lhe agradavam muito, estar impressas em tamanhos tão variados, com letreiros grandiloquentes e filas enormes na entrada. Aquilo só podia ser uma piada dos infernos.

Foi então que decidiu tomar um dose de absinto. Pensou que se pudesse se embriagar completamente, talvez pudesse retornar ao normal - Mas como, sem um franco!? Pedirei, quem sabe alguém se compadeça, afinal um bar é um lugar de pessoas mais humanas e não serei tratado com um louco. Assim espero - No caminho, ainda tentou adentrar outras exposições para apreciar pinturas, mas foi sumariamente expulso de todas.

Diante de uma estalagem imunda, finalmente se sentiu a vontade. Ah! Exclamou, um lugar do qual não serei expulso.

Por um desígnio desconhecido, daqueles que nem hermes desconfiava, um grande milionário passeava pelo bairro, fugindo da badalação das grandes exposições. Ao encontrar o pobre homem, todo sujo e mal vestido, ajudou-o a tomar um lugar e lhe ofereceu um primeiro drink.

- Que tempestade o surpreendeu pobre diabo? Todo sujo e perdido, logo será preso por vadiagem. Você tem família?
- Sim, acontece que não vou perder meu tempo explicando algo que provavelmente é parte de um grande delírio.
- O senhor me é familiar, parece um pintor que muito me agrada.
- Veja bem ...eu estou um pouco aturdido, como anda o mercado da arte? Por acaso o senhor conhece  algum pintor famoso? Monet... diz hesitante, com um olhar de canto de olho
- Ah..como não conhecer Monet!? Naturalmente, adoro suas pinceladas intuitivas e suas cores únicas... mas já se tornou um pouco decoração de consultório de dentista sabe.. ando buscando coisas novas, mais...
Van Gogh o interrompe segurando sua mão - senhor, por favor, você conhece um pintor que se chama Van Gogh? Ele vendia algumas gravuras, nada muito significante...

O homem cai em gargalhadas e olha a sua volta pensando estar em alguma pegadinha de um programa de TV.

- Veja você - diz o homem rico - alguns anos atrás comprei um van Gogh por 82 milhões de dólares!
O retrato do Dr. Gachet... foi um leilão emocionante. Era uma obra que eu gostaria em minha coleção pois aquele olhar melancólico diante de um gênio eclipsando pela loucura era algo único, cujo preço valeria qualquer sacrifício.
- Isso daria quantos Francos senhor? Dólares, é uma moeda que eu não me lembro...
- Creio que seja equivalente.. não ando acompanhando a cotação do Franco
- 82 milhões!? Como pode ser? Theo está vivo? Você falou com Theo? Foi ele que te vendeu esta obra??
- Senhor, parece que está desfalecendo! Meu deus! Acudam!!!!

Alguns momentos depois, o homem leva seu colega de bar para sua residência, lhe dá um banho e lhe veste com roupas limpas.

- Confesso que só perdi meu tempo conversando com você pois acreditava ser um sósia de van Gogh, achei engraçado convidarem um ator tão parecido com o próprio, até a orelha está cortada... admirei o realismo.
 - Veja bem, eu não tenho mais paciência para discutir minha sanidade... onde está o Dr. Gachet?
- Bem ali, na outra sala.
- Preciso lhe falar, pode chamá-lo?
- Sim, claro.

Decidindo dar asas a loucura de seu hóspede, o homem busca o quadro e apóia na cabeceira da cama.

- Aqui está! Dr. Gachet a sua disposição! Sabia que ele estudava quiromancia... só não sabia de seus poderes miraculosos, até o próprio van Gogh ressuscitou!

Diante do quadro, um silêncio tomou conta do pobre van Gogh. Seu olhar absorto parecia atravessar o quadro e tentava organizar um rascunho mental que pudesse articular todo aquele delírio em algo que fizesse sentido. Assim parecia ser pintar, tentar orquestrar o absurdo em faíscas que, de alguma forma, conseguissem unir os fragmentos da realidade ao redor de uma forma coesa e bela.

Van Gogh começa a balbuciar, um pouco cansado:

- Foi difícil pintar o Dr. em uma posição que não o deixasse tão melancólico, coisa que me incomodou, pois não gostaria de produzir algo semelhante aos meus auto retratos. Os cabelos muito loiros e o boné branco eram coisas que tentei equilibrar ao seu olhar desolado. Acreditei que seu tratamento poderia acalmar minhas crises e me dar um pouco mais de tempo para recompensar meu irmão. Não suportei os últimos 50 Francos, estava cansado demais de ser ajudado, de me arrastar pela existência às custas de meu querido irmão.

Foi então que van Gogh cruzou seu olhar com o do homem rico. Infelizmente, este não foi capaz de sustentar um segundo da tristeza ofertada, deixando a obra soltar de suas mãos, coisa que surpreendeu àqueles que acompanhavam a excêntrica cena de longe. Alguém ainda arriscou correr em socorro, mas já era tarde. A obra espatifou sobre o assoalho da sala ressoando pela amplidão do aposento, o que deixou os serviçais alvoroçados, pois jamais haviam sequer contemplado a obra... e agora ela estava lá, ao chão, como um pedaço de pão que tivesse rolado acidentalmente pela bandeja do café. 82 milhões de dólares estavam ali, espatifados no chão.

- O senhor possui uma casa linda. O que o faz acreditar que você merece isso tudo? Servos e luxo... até quando o mundo continuará a mesma coisa? Até em meus delírios... O senhor pagou milhões em meu retrato do Dr Gachet e, se eu não estiver completamente louco, consegui reunir várias pessoas para uma exposição, inclusive, consegui ser expulso da minha própria exposição, valha-me deus.
- Você deveria estar feliz! Veja como sua obra é reconhecida e valiosa! Paguei milhões em seu retrato... um momento.

O homem rico se abaixa para levantar o retrato e apoiá-lo contra a parede. (meu deus, quem já derrubou um van Gogh na vida!?)

- Você, como a grande maioria dos gênios não pode usufruir de sua fama e glória. Mas a história o honrou e o colocou no hall dos grandes mestres. Qualquer rascunho seu, hoje, vale milhões.

O homem rico falava baixo, tentando disfarçar para que ninguém o considerasse um doido, enquanto isso, van Gogh ia gradativamente aumentando o tom da voz... recuperando o vigor perdido minutos atrás.

- Meu senhor, preste atenção. Minha obra não vale isso tudo não, isso é muito dinheiro, muito dinheiro! Aceitaria 3.000 Francos e ficaria muito feliz por isso, conseguiria me sustentar por mais de um ano! Quantas pessoas não morreram por muito menos nos campos e minas do Borinage? Como pode este homem comprar um retrato meu por 80 milhões de Francos!? Metade disso seria suficiente para salvar todos os moribundos que vi em vida.
- Senhor van Gogh, conheço sua história e seus sofrimentos. Sou apaixonado por suas obras e aprecio seu fervor pelos pobres e desafortunados... o homem rico começa a tremer, pois acaba sendo tomado por uma onda de desespero que se choca com a alegria de testemunhar tamanho milagre, pois se recusa a abraçar a insanidade do momento, contudo, rompe todo constrangimento e brada: sempre quis dizer isso ao senhor, o senhor conseguiu! É um gênio reconhecido em todo o mundo! Todo o seu sofrimento valeu a pena! Toda sua história de privações frutificou em obras inigualáveis em toda história da arte.
- "esquecer-se de si, realizar grandes coisas, atingir a generosidade, e ultrapassar a vulgaridade na qual se arrasta a existência de quase todos os indivíduos" - sempre recitava isso ao meu irmão. Mas, ainda existem pobres miseráveis? Existem prostitutas que se matam? Crianças que morrem na sarjeta?...
- Com toda licença senhor van Gogh! - o homem rico se aproxima para abraçá-lo e tirar um selfie - deixe-me fazer uma coisa muito rapidamente.
- Que diabos!? Saia de perto de mim! Os ricos não mudam nunca, não conseguem responder uma simples pergunta no que se refere aos outros seres humanos! Me devolva esse quadro seu imbecil! Mas que imbecil idiota!

Van Gogh se descontrola e surra o homem rico até a inconsciência. Enquanto esmurrava, gritava coisas como: minha arte nunca será sua! Morra com seus milhões sua abominação! Deixe o mundo em paz! Seus empregados contemplaram atônitos a cena desde o início como se estivessem em uma peça teatral, sem ousar interromper o que lhes parecia, até então, estar agradando ao homem rico. O fim da conversa, entretanto, quebrou todas as expectativas dos ouvintes, deixando o rico prostrado sobre uma poça de sangue enquanto o senhor desorientado saía pela porta da frente com um pijama branco e um quadro de 80 milhões de dólares embaixo dos braços.

Enquanto corria pela ruas, ensanguentado, van Gogh foi parado pela polícia e recebeu três tiros no peito. Fato que nunca chegou ao conhecimento do público porque o dono do quadro era uma pessoa muito influente. Van Gogh foi enterrado como indigente e o quadro voltou a decorar a sala de jantar.        


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