Perfeição e Graça

Enso
"Como disse o cardeal Newman: 'num mundo mais elevado, é diferente, mas aqui embaixo viver é mudar, e ser perfeito é ter mudado várias vezes'.
E o que entendo pela palavra 'perfeição'? Não tentarei explicar, mas apenas dizer: a perfeição me faz rir. Não de modo sarcástico, apresso-me em acrescentar. Com alegria"         Susan Sontag

Buscar a perfeição sempre foi uma meta humana, seja na arte ou na religião, esportes, trabalhos, relacionamentos...etc. Sempre que vejo uma apresentação qualquer percebo que estamos caminhando para melhorar alguma coisa e quando penso nas religiões sempre me vem palavras do tipo: iluminação, pureza, santidade, glória, imaculado, purificar, perfeição, e por ai vai. Devemos buscar a perfeição dizem, e temos um longo caminho pela frente.

Quando estudamos as religiões, cada uma possui seus campeões. Buda é um estado que já foi alcançado por outras pessoas antes de Gautama, mas depois dele ainda não me vem a cabeça nenhum outro nome. Existiram iluminados, mas não outros Budas depois de Sidarta Gautama. Os cristãos esperam a segunda vinda de Cristo e nos relatos bíblicos apenas uns dois não viram a morte, Enoque e Elias. Esses foram homens "segundo o coração de Deus" e foram "arrebatados ao céu" durante suas vidas. Os espíritas possuem seu Kardec, os hindus seu krishna, muçulmanos tem o profeta Maomé... cada herói reúne em sua biografia todo o corpo da religião e se confunde com ela.

Nas artes a perfeição tão logo aparece, se torna um clássico. Não que o artista queira deliberadamente entrar para história, antes, percebo uma paixão pela forma e pela criação que o invade, vicejando por toda sua vida. Valery comenta a respeito do motivação do artista:

"Amor, sem dúvida, e a ambição, assim como a sede do lucro, povoam poderosamente uma vida. Mas a existência de um objetivo positivo, a certeza de estar próximo ou distante, de ter alcançado ou não, que tal objetivo comporta, faz dessas paixões paixões finitas. Inversamente, o desejo de criar alguma obra em que apareça mais potência ou perfeição do que encontramos em nós mesmos afasta definitivamente de nós esse objeto, que escapa e se opõe a cada um de nossos instantes. Cada um de nossos progressos o embeleza e o afasta. 
... 
Não há nada mais admirável do que a virtude e a paixão de Baucher, dedicado ao cavalo, louco por equitação e adestramento, até o minuto de sua morte, mais bela do que a de Sócrates, quando usa seu derradeiro suspiro para dar um último conselho a seu discípulo favorito: 'a rédea é tão bonita'... e, pegando sua mão, ensinando-o a posicioná-la como achava que se devia fazer: 'fico feliz', diz, 'de lhe dar mais isto antes de morrer'."

Precisaríamos de muitas vidas para dominar uma arte, talvez daqui venha a ideia de múltiplas encarnações. Mas apenas o trabalho e o esmero não são suficientes para o artista, nem para o homem da religião, pois o que está em jogo não é algo que se resume a realização do individual. Neste ponto, flertar com a perfeição significa abandonar os limites da habilidade técnica e abraçar a graça.

Algo cansativo são nossas ideias a respeito da perfeição. Sempre quando tocamos nesse assunto todos se revestem de uma humildade severa e dizem: ainda preciso melhorar muito, ou perfeito só Deus é, ninguém é perfeito. O que nos passa pela cabeça quando pensamos na perfeição? Ser perfeito seria alguém que não solta pum? Que não morre, que emite luz? Saber tudo é perfeição? Como diz o cardeal Newman na citação de Susan Sontag, precisamos adaptar nossa visão de perfeição ao mundo sublunar, isso é importante para não abraçarmos a mediocridade como sinal de humildade.

Quando misturamos ética e perfeição temos a receita de infinitos equívocos, aqui me lembro da mais famosa justificativa de todos os tempos: fiz essa merda, mas ninguém é perfeito né!? No campo da arte está claro que caráter não é um bom critério para julgar um autor e sua obra, já no cristianismo isso ainda é um tabu e fica no ar a ideia de que somente teremos plena capacidade de sermos responsáveis moralmente quando tivermos um corpo glorioso (que não solta pum). Anjos antes da queda, eram perfeitos não? Adão antes de pecar era perfeito também, mas pecou e aquele pecado primevo é igual a todas as transgressões cometidas por todos os seres humanos. E isso é o que nos permite ser responsáveis.

Uso aqui o cômico do Zen com suas histórias de iluminação como exemplo de como os povos orientais percebem essa relação entre perfeição-trabalho-graça de uma forma mais sofisticada. Vejamos uma:

"Certo dia, Tokusan estava sentado do lado de fora da casa, tentando penetrar o mistério do Zen. Ryutan perguntou: 'por que não entrais?' Replicou Tokusan: 'está muito escuro'. Ryutan acendeu a vela e apresentou-a a Tokusan. Quando ele estava quase alcançando a vela, Ryutan soprou a luz, de repente. Naquele instante abriu-se a mente de Tokusan." D. T. Suzuki

O Satori, nirvana para o Zen, é um estado que se alcança de forma fortuita, algo que exige esforço e dedicação, mas que acontece quando o discípulo não está esperando. O Satori é uma quebra do curso natural do pensamento, algo que habita o plano mental, sendo uma mudança profunda de perspectiva diante da vida - um encontro.

"Quando a mente está pronta, por uma razão ou outra, um pássaro voa, uma campainha toca, e retornarás a tua casa primitiva. Isto é, reencontrarás o teu ser real. Desde o começo nada o ocultava, tudo o que desejavas ver lá estava diante de ti, eras tu somente que fechava os olhos ao fato."
D. T. Suzuki

Encerro o post com uma anedota chinesa que une arte e espiritualidade em um único gesto:

"Entre as múltiplas virtudes de Chuang-Tsê estava a habilidade para desenhar. O rei pediu-lhe que desenhasse um caranguejo. Chuang-Tsê disse que para fazê-lo precisaria de cinco anos e uma casa com doze empregados. Passados cinco anos, não havia sequer começado o desenho. 'Preciso de outros cinco anos', disse Chuang-Tsê. O rei concordou. Ao completar-se o décimo ano, Chuang-Tsê pegou o pincel e num instante, com um único gesto, desenhou um caranguejo, o mais perfeito caranguejo que jamais se viu"        
Italo Calvino




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