Tatuagem: o sentido como uma experiencia de cicatrização.

Cena do filme Amnésia

Acho que nunca conseguiria fazer uma tatuagem. Não conseguiria sobreviver com algo em minha pele, uma mensagem, desenho ou seja lá o que for, sem que eu pudesse tirar. Uma vertigem me aperta o coração quando imagino que terei que contemplar uma imagem sem poder tirá-la de mim. "Faça nas costas" ou faça algo "non sense" e assim você evita aquele enjoamento comum aos mortais. A vertigem, mesmo assim, continua.

Li um texto tentando explicar porque as pessoas fazem tatuagens, mas que ao cabo não explicou nada. Hoje, gostaria de pensar algumas coisas sobre esse tema sem ter nenhuma pretensão, tendo como base algumas coincidências que vem aportando em meu ser nos últimos dias.

A relação corpo e mente, me parece, está em primeiro plano. Nosso corpo se levanta como uma instância que nos ancora na realidade, como disse o Sr. Goenka: o corpo é a moldura do ser. Nada escapa à carne e às sensações. Minha impressão é de que tudo o que experimentamos e somos, em qualquer sentido que seja, é acompanhado por uma vibração (afecção?) de nosso corpo. Por tanto, nosso corpo se torna um último refúgio quando nossas ideias vacilam. Em outras palavras: quando o que sou trepida, encarno. Uma pergunta: seria a encarnação o último recurso? Seria Jesus o último recurso do Deus hebraico?

No texto de Kafka intitulado Colonia Penal, o autor descreve um oficial prisional que aplica penas capitais utilizando uma máquina que imprime no corpo do detento (ou melhor, "bandido") a sentença. Servindo-se de agulhas, a máquina recebe as coordenadas da pena e imprime, ao longo de seis horas de trabalho, a "imagem da pena" na carne do condenado. Não é simplesmente uma escrita na pele, como "respeite seus superiores", mas é uma escrita que se aprofunda na carne, portanto o desenho não é de uma caligrafia inteligível aos leigos, mas é fruto de longos experimentos do inventor. Quando a máquina termina, o condenado entra em um êxtase final, transmitindo a impressão de ter incorporado indelevelmente a sentença recebida.

Essa máquina revela a aspiração secreta de todos aqueles que odeiam a corrupção (em todos os sentidos): construir um sistema de leis que seja à prova de subjetividades. "Precisamos de um corpo de práticas e leis que não permitam a fraude", pois se dependermos de pessoas para interpretar, ou se nossas atividades não são normatizadas o suficiente, logo as leis, ou cargos, poderão ser usados para fins particulares e distorcidos. Nada mais consolador que um sistema que funciona a revelia dos seres, com engrenagens azeitadas, silenciosas e precisas. Essa é a ideologia que respira por trás de toda tecnocracia.

Outro exemplo de usos da tatuagem me veio ontem quando assisti ao filme Amnésia. Por que assisti esse filme ontem? Não sei dizer. O engraçado é que já havia assistido ao filme quando ele foi lançado, mas não me lembrava mais de nada. O personagem vai tatuando informações vitais em sua pele, hora usando uma técnica amadora, hora pedindo ajuda profissional. Ao longo do filme, ele utiliza vários expedientes, como fotografias, anotações, tatuagens e em último lugar, seu instinto; tentando com todas as forças manter uma linearidade que consiga compensar sua incapacidade de registrar memórias de curto prazo. Todo esse enorme esforço tem como pressuposto o fato de que a memória, quando funciona bem, é perfeitamente capaz de registrar a verdade, ou os fatos. O registro na pele se revela como um último recurso de uma mente que vacila, permitindo um mínimo de continuidade, de sentido, ao personagem. No peito de Leonard estão escritos: "John G estuprou e matou minha mulher" e "o encontre e o mate".

Deixando de lado as perspectivas de estilo e estética, acredito que a tatuagem seja um recurso de cicatrização de uma identidade ferida, por isso, normalmente, fazer uma tatuagem implica em sentir dor e aguardar pela consolidação da imagem após ela "abrir" nossa pele pela fricção das agulhas. Fazendo isso, confiamos no fato de que nossa pele pode cicatrizar sozinha, e, assim, pedimos que ela cicatrize outras dores que teimam em não fechar.

Nos momentos finais do filme, Leonard tem seus esforços colocados em cheque quando escuta a sentença "todos nós acreditamos na verdade que queremos acreditar" ou algo assim, não tenho certeza. A ideia maior, insuportável, é: criamos nossas próprias verdades. Eu apenas acrescentaria uma versão mais terna: nós temos a verdade que podemos suportar. E construir uma identidade sempre é um esforço de lidar com o contingente e resistir diante de uma realidade que nos violenta, as vezes doendo mais, as vezes menos, tudo na medida do possível.

A tatuagem é uma apropriação deste processo vital segundo o qual compreendemos que todo sentido é a incorporação de experiências que nos abrem a alma e a carne e que toda escrita é, de certa forma, uma cicatriz.

Falamos, em certo sentido, apenas daquilo que já superamos. Nietzsche disse isso, em algum lugar...rs

Quantas dores ainda estão abertas? O que podemos fazer para cicatrizá-las? O que fazer com as dores que nos impingem, com aqueles que querem concretizar suas certezas em nossas carnes? E os milhares que sofrem para tornarem o mundo algo mais inteligível? O que será daqueles que precisam abrir em suas peles a tatuagem do mundo?

A sabedoria da tatuagem é perceber que a beleza e a identidade se constroem na medida que toleramos a verdade a nós oferecida pela vida. O resto é rasuras.


§580 - Má memória (Além do bem e do mal)
A vantagem da má memória é que se usufrui muitas vezes das mesmas coisas pela primeira vez.

Talvez seja por isso que eu não consiga fazer tatuagens.


         

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O último teste - histórias que nos ajudam a encontrar o caminho

Noé e a metáfora da vida

O retorno da alegria