Um filósofo dos contos de fadas

G. K. Chesterton / (Domínio Público)

Difícil encontrar um religioso que não se exaspera diante da possibilidade da discussão. Entrincheirando-se em uma pseudo superioridade mística, acaba por desperdiçar a oportunidade de descer à arena dos argumentos. A percepção do sagrado encontra inimigos de todos os lados da batalha, tanto dos religiosos quanto dos céticos, ambos tem colaborado para que a espiritualidade permaneça nas sombras.

A questão toda se coloca quando levantamos nossas bandeiras. Você é um believer, eu sou uma pessoa razoável... às armas! 

Qual é o problema deste início de conversa? Existe uma escolha de terreno estratégica que me lança no pântano da crença, sendo que o resto da discussão se passará na redução da fé como uma fuga covarde diante da perspectiva de viver uma única vez, como se a fé fosse apenas uma questão de ter um barco salva vidas no curso de uma vida fadada a acabar. O tema da fé como miragem, ou ópio, para desesperados viventes de um planeta à deriva é tão batido que já desperta bocejos.

O olhar sereno do homem que afirma que essa vida é tudo, diz nas entrelinhas que ele não precisa da fé como consolo, afinal ele já aceitou o fato inexorável e razoável de que a morte é um fato e nada podemos dizer do além túmulo sem embarcar numa viagem de crenças que nunca serão mais do que fábulas. Aqui fica difícil parar a discussão e dizer que eu não sou um crente e já passei vários anos sem acompanhar uma religião específica. Não procuro o sagrado como tábua de salvação, nem faço questão de lançar mão de um Deus para explicar essa vida, ou ter um pós morte para dar um sentido a minha vida. Não busco o sagrado como "rota de fuga" via fantasia.

Outra coisa que gostaria de dizer é que a coragem se apresenta como uma certidão de suficiência, como se a fé fosse uma iguaria destinada aos covardes. Diante da possibilidade de descer as cataratas num barril, iria admirar a coragem de uma pessoa que topasse tal empreitada, mas não iria aceitar o convite. Este exemplo parece esdrúxulo, mas segundo o wikipedia 16 pessoas já tentaram descer as cataratas do Niagara num barril, 5 delas morreram. Creio que a coragem é um elemento valoroso, mas não suficiente para garantir que um ponto de vista esteja correto. 

Eu acredito que a importância do sagrado não está na oferta de alternativas covardes ao aniquilamento da morte, mas ao fato de agregar à razão um pouco mais de vísceras e musculatura, pois a razão abandonada a si mesma engendra apenas pessimismo e loucura. 

Seguindo Chesterton:

"Se você discutir com um louco, é extremamente provável que leve a pior; pois sob muitos aspectos a mente dele se move muito mais rápido por não se atrapalhar com coisas que costumam acompanhar o bom juízo. Ele não é embaraçado pelo senso de humor ou pela caridade, ou pelas tolas certezas da experiência. Ele é muito mais lógico por perder certos afetos da sanidade. De fato, a explicação comum para a insanidade nesse respeito é enganadora. O louco não é um homem que perdeu a razão. O louco é um homem que perdeu tudo exceto a razão."

Ouço diariamente um bocado de argumentos de pessoas que odeiam as religiões por propagarem a ignorância e exploração de pessoas simples. Eu acredito que as religiões são benignas pois a fé permite ao homem desenvolver sua razão sem enlouquecer, arejando e liberando espaços afetivos que não floresceriam no sol escaldante do materialismo. O problema do racionalismo das ideias "claras e evidentes" é que uma vez em marcha, ele acaba triturando todos os nossos ossos, transformando tudo em uma sequencia infinita de causas e efeitos. Torna-se impenetrável e sem janelas. Neste novo mundo nada mais cabe além do que pode ser cientificamente comprovável, o resto descartamos na lixeira das crenças e encerramos a discussão.

"O louco está na limpa e bem iluminada prisão de uma ideia só: é afiado num só doloroso ponto. Está desprovido da sadia hesitação e sadia complexidade."

A fé abre janelas no mundo, povoa nossa imaginação e nos permite circular pela existência em liberdade, admirando um mundo que se abre a novas perspectivas sem precisar abrir mão da razão, afinal, crer no sagrado não implica em revogar nossa capacidade de raciocinar. Esse falso dilema nos impede de perceber que a fé não é o negativo da razão; não nos permite estabelecer um diálogo honesto sobre o valor do sagrado e sobre o morbidez oculta sob o império da razão em uma cultura fundada na utopia do eterno progresso científico.    

"O sr. McCabe acha que sou escravo porque não me é permitido acreditar no determinismo. Eu acho que o sr. McCabe é um escravo porque não lhe é permitido acreditar em fadas. Mas se examinarmos os dois vetos veremos que o dele é realmente um veto mais puro que o meu. O cristão tem perfeita liberdade para acreditar que existe uma considerável quantidade de ordem estabelecida e desenvolvimento inevitável no universo. Mas ao materialista não é permitido admitir em sua imaculada máquina a menor mancha de espiritualismo ou milagre. Ao coitado do sr. MacCabe não é permitido reter nem sequer o menor diabrete, embora este possa estar escondido em algum jardim."  

Criei este post para compartilhar estas citações e divulgar as palavras de alguém que se esforçou por alcançar seus interlocutores e contemporâneos com um pensamento honesto. Espero em breve divulgar outras passagens e explorar outras perspectivas do livro Ortodoxia, escrito por Chesterton em 1908.  

  

        

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