O corpo dança.


Foto de Anna Wloch - Café Muller #3

        Não sei nada sobre Pina Bausch, mas quando vi o trailer do filme produzido pelo Wim Wenders com um casal interpretando uma coreografia dela fiquei bobo, fui fisgado. Desde então sentia uma vontadezinha bem tranquila, esgueirando pelos meus pensamentos e sempre que eu falava de filmes com meus amigos dizia: queria ver um filme do Wim Wenders sobre Pina Bausch... não sabia nem o nome.

       Um belo dia, sentado no sofá de minha irmã, ligo a TV e dou de cara com ela. Liguei as informações pra confirmar e era ela mesmo! Não é estranho quando desejamos algo por muito tempo e de repente batermos com ela por acaso? Olhei cada cena com um prazer daqueles que sentimos com consciência, (coisa de gente velha que sabe que coisas boas assim são raras). Acompanhava as performances, os depoimentos e ia sentindo uma alegria, pois aqueles dançarinos estavam soltos e seus corpos participavam de uma liberdade silenciosa. Tal espontaneidade de movimentos eu havia contemplado anos atras quando uma pipa enroscou num cabo elétrico em frente de casa, a pipa ficou pendurada e sua rabiola dançava com o vento, uma coisa leve, alegre, agora, ali eram pessoas! 

       Spinoza disse que não conhecemos o que nosso corpo é capaz de fazer, não conseguimos entender. Era difícil, dentro da filosofia de Spinoza, compreender como a alma e o corpo se relacionavam, porque o filosofo fazia uma questão imensa de diferenciar estes "modos finitos", acho que era uma maneira de marcar sua posição frente a filosofia cartesiana e a moral da época que dizia ser o corpo algo a ser dominado pela alma, como se o corpo fosse o repositório de todos os instintos animalescos que poderiam, em um momento de deslize, derrubar todo o edifício da civilidade e dos bons costumes - representados pela alma. 

       O corpo tem sua própria maneira de ser e isso não é facilmente acessado por nosso intelecto, nossas impressões sofrem inúmeras interferências, por exemplo: imagine você faminto em meio a uma multidão no Brás, daí você encara aquele vendedor de churrasco grego e pede um sandubão. Se o seu corpo pudesse falar ele diria: sinto calor, fome, barulhos os mais diversos, o gosto da carne gordurosa, dores nos pés, prazer da saciedade, cansaço pela manha de caminhadas...  Percebemos as coisas de várias maneiras. Seguindo o exemplo acima poderia dizer que uma alegria leve passaria pelo seu ser quando você terminasse seu lanchinho e que de uma maneira estranha você se lembraria do Brás sempre que sentir o cheiro do sanduba grego. Você pode pensar que sanduba grego é um disparate gastronômico, mas naquele momento ele o alimentou. Seu corpo não tem preconceitos, tem, no máximo, más impressões. Se você não morrer, segundo Spinoza, você sentirá alegria ao contemplar a iguaria popular. 

       Pina Bausch também afirma essa independência do corpo. As cenas que acompanhei no filme mostram trechos de peças onde os dançarinos interagem com o ambiente, com seus colegas, em uma dinâmica incrustada no corpo.  Algumas cenas me marcaram, digo-lhes:
- um dançarino se posiciona com os braços estendidos em uma disposição circular, como se estivesse abraçando uma grande bola, ao lado de outra dançarina que está sobre uma cadeira. Ela mergulha no vazio circular e "entala" nos braços de seu colega. 
- uma loira dança rente ao chão enquanto outra joga-lhe terra com uma pá. Enquanto a loira avança, a outra arrasta o monte de terra e derrama novamente sobre seu corpo. (Essa cena é animal)
- quando um dançarino se lança sobre outro e se encolhe em seus braços. 

       Podemos perceber que os corpos apoiam, carregam, procuram abrigo e segurança, interagem de múltiplas maneiras, em um ritmo próprio - vivo. Quanta riqueza de movimentos, de sensações! Um alfabeto infinito de gestos se põe a minha frente e percebo como tenho relegado minha própria corporalidade a uma rotina restrita, monossilábica. 

       O que fazemos diariamente senão falar e sentar em frente à um computador? Sem contar aquelas horas estéreis no carro, ônibus, metrô. Nosso corpo virou um burro de carga. Parece que, até agora, Descartes e os Estoicos venceram a guerra. Digo isso porque nosso corpo é pensado como uma máquina que está a "nosso serviço", para nos levar aos lugares, para nos dar prazer(do gastronômico ao sexual), para ser bonito(atividades físicas como um incremento estético de nossa carcaça). Nosso corpo não está livre. O corpo é ainda escravo de nossos preconceitos morais, por isso enxergamos o nu como algo lascivo, mero entreposto entre nossos apetites. 

       Nietzsche disse que não acreditaria numa verdade que não pudesse ser dita dançando. A dança é este momento digno do corpo onde ele lhe diz o que fazer, o que é certo e o que é melhor. Quando a musica toca seu corpo se movimenta, desengonçado, vibrando, ele não sabe o que é bonito, adequado. Na aula de dança o professor diz: não adianta mandar seu pé fazer isso e aquilo, ele não vai obedecer, apenas o tempo e a prática funcionam.

       O que é uma alma e um corpo dançando?
       Você!

       Dance, dance, senão estamos perdidos! - Pina Bausch

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