As belas dormideiras
“Parecia
que a tentativa de deter um instante – por mais serenas que fossem as situações
retratadas – e suspender o fluxo do tempo violava uma harmonia preexistente, a
que o mundo reagiria por meio de um recolhimento, de um retraimento que
retiraria da aparência das coisas toda a vivacidade.” O silêncio do mundo –
Rodrigo Naves pg. 50
Nesta
passagem, Rodrigo Naves comenta a fotografia de André Kertész, comparando as
plantinhas dormideiras e seu comportamento peculiar à realidade que se fecha,
tímida, ao olhar fotográfico.
As
dormideiras são aquelas plantinhas um pouco espinhentas e pequenas que vivem
nos cantinhos dos jardins. Eu costumava passar a mão só para vê-las fecharem
suas folhas, descobri que, ao mais leve movimento, elas se encolhiam. Pareciam
crianças arteiras fechando o semblante depois de receberem um olhar de
reprovação. O que é engraçado com as dormideiras acaba ficando problemático
quando se trata de fotografar as pessoas, porque empunhar uma máquina
fotográfica é um ato em certa medida violento, assertivo, que altera o estado
da pessoa diante da câmera. Isso não é algo se resolva com um comentário do
tipo: haja com naturalidade! Pergunto-me como contemplar essa maravilhosa
realidade e pedir-lhe que se deixe retratar... como seduzi-la?
Poderia
retratar as pessoas sem que elas soubessem disso, tipo com uma câmera
escondida. Havia um fotografo que viajava de trem com uma câmera escondida e
fotografa as pessoas em momentos em que elas estavam totalmente absorvidas em
seus pensamentos e conversas. André Kertész fez um conjunto de fotos chamadas
“on reading” em que retratava pessoas lendo, pois uma coisa que se faz com
atenção acaba baixando nossas defesas, permitindo captar o “ar” da pessoa.
Outro fotografo pedia para os modelos pularem de leve, pois acreditava que o
ato de pular absorvia a atenção das pessoas as tornando menos preocupadas com a
fotografia em si, preservando, assim, a espontaneidade do momento.
Todas
essas artimanhas mostram apenas uma coisa: fotografar é um ato violento.
Daí a
pensar que tiramos fotos para expressar beleza, para congelar os momentos belos
e que não queremos esquecer, seria acrescentar ao ato fotográfico uma segunda
carga de violência. O que sobra após todos esses desentendimentos? O que sobra
das dormideiras? Apenas os espinhos...
Susan
Sontag diz que depois da invenção da câmera fotográfica os endinheirados que
partiam em safári na África não portavam mais rifles, mas câmeras. Assim como
já haviam roteiros planejado para as miríades de japoneses com suas Nikons,
juntamente com placas indicando as melhores paisagens para fotografar. Hoje,
poderia citar os shows com milhares de câmeras apontadas para o palco, os
Instagrans que captam todos os momentos felizes de seus usuários... Esses meios
permitem um uso da imagem que ignora as armadilhas da câmera, que explora nossa
inclinação em atestar como realidade aquilo que colocamos na imagem, esquecendo
de que isso é algo puramente unilateral, fechado. É algo muito atraente não?
Praticamente voyeristico..rs Dizemos à imagem: você me pertence.
Existe,
também, o prazer do modelo. Seria aquela sensação gostosa de agradar, de ser
exatamente o que você, expectador, esperava que ele fosse. Assim, realizamos
por espontânea vontade a violência que normalmente receberíamos dos outros,
cortamos um caminho, tentamos ficar “bem na foto”. Nesse sentido a beleza
apenas reproduz o que nós, em eras, tentamos fazer dela: um doloroso percurso
de submissão, em troca do prazer da ulterior aprovação.
Lembro-me
de Dogville, quando a linda Nicole Kidman é sistematicamente violentada pelo
vilarejo em que decidiu se instalar e que inicialmente foi calorosamente
acolhida, mas depois as coisas foram ficando estranhas e terrivelmente normais.
E o mais interessante é que ela não era uma vítima, mas a concretização de um
avatar, algo divino. Ou seja, ela personificou algo insuportável unindo uma
beleza estonteante à vontade sincera de agradar e se submeter, acabou por
destruir tudo ao seu redor.
O
questionamento que eu levantei inicialmente pela fotografia aponta para um questionamento
dos relacionamentos: será normal nos relacionamos pela violência? Que seja
prazeroso eu não nego, mas por que devemos nos aferrar tanto aos espinhos a
ponto de negar que as flores sejam possíveis... por que negar a beleza pelo
prazer? Quando afirmo que negamos a beleza, quero dizer que deixamos de
percebê-la quando acreditamos que ela está ali, diante da câmera, exposta pela
mera situação fotográfica. A beleza que eu reclamo não é normalmente vista,
deve ser surpreendida, seduzida, exige uma sutileza que não estamos habituados,
não é fruto do apontar indiscriminado da câmera.
Fotografar,
nessas condições, é amar o que se esconde. É, como diz Agamben, descobrir o
nome oculto das coisas, ao que elas respondem saindo de seus esconderijos, se
tornando manifestas.
Essa
é a magia da fotografia.
Essas fotinhos são do niver de minha sobrinha
Essas são da série On Reading de André Kertesz
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