Não consigo ver

Foto: Bhavesh Patel - deficiente visual, fotografou ao "ouvir" os pássaros.

Conheço as pessoas pelo tato. E se de alguma forma perco o contato com elas, sinto-me perdido.

Quando entro em um ambiente desconhecido, com pessoas novas, sou como um cego no meio de uma avenida movimentada. Cada passo é assustador e inseguro, mas eu preciso arriscar, do contrário não conseguirei sair do lugar e esta posição é igualmente desconfortável. Tudo que eu tenho a mão, todos os sentidos que me restam estão atentos, mas em vão, porque tudo é tão veloz e dinâmico e tão visualmente estabelecido que minha alma fica atordoada – não consigo me conduzir fora de uma demarcação delimitada, tipo aquelas trilhas azuis do chão do metrô. Meu caminho é reto e solitário.

De vez em quando alguém se compadece e me pega pela mão e conta como as coisas são. Consigo descansar, por um momento.

As pessoas que encontro normalmente se assustam, pois é estranho, reconheço, uma pessoa te conhecer apalpando com perguntas íntimas, tipo: O que você acha de Deus? Te explico: Deus é o chão dos cegos. E por ter uma deficiência tão fundamental, certas coisas se tornam meu único parâmetro crítico para conhecer pessoas. Quando assisti o filme contando a história de Ray Charles, achei engraçado quando o cantor ia flertar no bar e a primeira coisa que ele fazia era segurar no pulso da garota pra saber se ela era ou não atraente, acho que sou assim, a minha maneira.

Aulas de dança foram feitas para pessoas como eu, cegas das outras pessoas. A linguagem é corporal e consigo perceber a pessoa sem aquele clima de assalto sexual, porque dançar exige proximidade, as pessoas não se assustam com um abraço. Normalmente me pego com os olhos fechados, feliz – não porque eu seja tarado..rs Esse sorriso é o sorriso dos cegos.

Nas aulas de francês conheço as pessoas pelas piadas, por isso desenvolvi um senso de humor desconcertante e impertinente, isso tudo porque não pensaram, ainda, uma calçada para cegos sociais, assim dou o meu jeito. Descubro que as pessoas estão ali quando elas riem, ou quando xingam, e assim vou me orientando. Desculpem-me.

Conheço as pessoas por coisas que elas não estão acostumadas a conhecer de si mesmas, sei que é você (você mesmo!) pelas coisas que você ignora, isso pode te espantar porque você ainda não percebeu que eu sou cego. Quando você está diante de mim eu não te enxergo como você está acostumado a perceber quando se olha no espelho. Eu sei que é você pela sua maneira de abrir a porta e pelo peso de suas passadas, pelo cheiro de suas ideias. O que me incomoda e me encanta nas pessoas são coisas para elas mesmas desconhecidas e isso inaugura um desencontro fundamentalmente linguístico. A linguagem para mim nunca foi comunicação, sempre uma construção bem torta, adaptada, feita para tatear e para encontrar no vazio. Minhas palavras são minha varinha. Com elas vou batendo o ambiente, descobrindo obstáculos, abismos, pessoas, e geralmente percebo as coisas apenas quando elas estão diante de mim, não consigo conhecer à distância.

As pessoas me dizem: como você está bonito! Eu digo: Obrigado! Mas eu não sei como estou vestido. Se estivesse nu, não saberia.      

No documentário “janelas da alma” um poeta cego disse que a maior angústia de sua vida foi estar na praia com sua filha, uma criança pequena, e de repente ser levado por uma grande onda, que o separa de sua filha. Ele diz que estava sozinho na praia e que “olhava” apavorado ao seu redor e que ainda conseguia enxergar por contraste reflexos do entardecer, o que permitiu encontrar sua filha depois de alguns segundos. Para ele, esses vinte segundos duraram uma eternidade.

Sinto essa angústia quando não me faço entender.


Comentários

  1. Que desabafo, hein!? rs
    Precisa compartilhar este post com algumas pessoas, pra ver se facilita a comunicação...

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