Descanso

Descanso dos Romeiros

Descanso é um termo espanhol utilizado para designar o lugar em que a comitiva deveria parar no percurso entre a igreja, onde era velado o defunto, e o cemitério. Isso porque antigamente o cortejo fúnebre carregava o caixão no muque, e a distância entre a igreja e o cemitério não era curta, daí haviam certos "checkpoints" em que o cortejo parava para puxar um fôlego.

Com o advento do carro esse costume se perdeu e o descanso assumiu outro significado. Agora, o descanso é uma espécie de homenagem ou memorial construído em um lugar onde pessoas tiveram suas vidas subitamente interrompidas, o que, em nossos dias, comumente acontece em acidentes automotivos. Depois de conhecer essa breve historinha, pude entender o que significavam aquelas cruzes e capelinhas construídas na beira da estrada, com várias imagens de santos e velas derretidas, coisas que eu via com certo temor e que emanavam uma energia tenebrosa.

A mudança do sentido da tradição do "descanso" indica que o avanço técnico sepultou antigas tradições, alterando nossa vivência da temporalidade e da morte, fraturando, consequentemente, nossa concepção da vida.

Aquele percurso lento e silencioso em que carregávamos nossos mortos para seu último logradouro era um caminho que permitia nossa alma se desprender, dolorosamente, de laços afetivos profundos. Nossos corpos marchavam suportando o peso da morte e quando isso era exaustivo demais, parávamos. Neste momento percebíamos que nossas almas eram frágeis e que precisavam de uma pausa para suportar aquela separação, a vida parava para lamentar.

O descanso em seu antigo sentido era o reconhecimento de que nossa vida cotidiana precisava de marcos para reencontrar nosso universo interior e que sem isso perdemos de vista os diversos planos de temporalidade que permeiam nossa existência. Esquecemos que certas pessoas, acontecimentos, sentimentos, não se põem com o sol. Essa desconexão de hábitos gera fenômenos estranhos, sofrimentos e cargas nos acometem sem que possamos entender o por quê. Aquela máxima que diz ser o tempo a cura de todas as feridas não especifica em qual ritmo dançam nossos afetos, tenta planificar os planaltos de nossa memória.

Em o Tempo e o Cão, Maria Rita Kehl relata a história dos sobreviventes da primeira guerra mundial e de seus sonhos recorrentes que os transportavam de volta para o campo de batalhas. Os sonhos recorrentes, para a autora, significavam que os soldados foram expostos a experiências de morte que fraturavam o fluxo natural das experiências cotidianas, pois a partir da primeira guerra a industrialização e a tecnologia proporcionaram uma matança como nunca havia ocorrido antes, o que não conseguia ser "digerido" pelo inconsciente dos soldados e posteriormente os atormentava. Assim, os sonhos seriam uma tentativa de absorção das experiências de stress vividas na guerra.

Os sonhos, assim como as cruzes e as velas, invadiram nosso cotidiano para nos dizer que algo importante ficou pelo caminho.

Sinto-me compelido a construir meus próprios descansos para lamentar o que se perdeu e contemplar os vales vazios de minha memória. Lamento as experiências que não irão se repetir, aqueles bons momentos que aconteceram sem que eu me desse conta do quanto foram especiais. Despeço-me dos rios que secaram e dos lugares queridos, agora, inacessíveis. Deixo nesta curva uma cruz e acendo uma vela como homenagem àquele Paulo que ficou para trás e do qual não consegui me despedir.


 

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