O estrangeiro em nós

Pântano - Bosque da Barra- RJ - Elizabeth Coelho
Sonhei que sobrevoava um pântano encharcado. Parecia que estava para encontrar alguém ou um velho conhecido. Olhando a planície alagada encontrava uma pessoa transitando em uma espécie de lancha, rompendo a lama e se afastando, lentamente. Após pousar eu adentrava um rio raso que se ramificava em vários afluentes, surfava com várias crianças, curtindo uma "pororóca" amazônica. A cada curva encontrava novas crianças que chegavam em pequenas ondas. Depois deste momento de curtição eu parei para apreciar a paisagem e fiquei estupefato, pois a planície estava de um verde claro daqueles que parecem acesos por uma brecha inusitada nas pesadas nuvens de uma chuva de verão. Gostei tanto que comecei a falar comigo mesmo: como eu vivi até hoje sem contemplar isso!?

Este sonho despertou sentimentos suaves, uma coisa tipo um reencontro com algo que estava perdido há muito tempo, mas que não estava distante, apenas submerso sob uma fina camada de água e lama. Todo este sonho cheirava saudade e também tinha aquele sentimento gostoso que sentimos quando estamos para encontrar alguém que amamos, aquele calor cálido que nos toma aos poucos e pegamos o tempo como uma corrente de ar, aí vamos subindo e contemplando as paisagens futuras. Aprendi que certos momentos podem nos levar longe, como ondas avançando sobre o mar, precisamos apenas ter aquele tino de nos posicionar, esperar e sentir, dai em diante é só subir na prancha e curtir.

Gosto desses sonhos malucos porque alguns sentimentos persistem mesmo depois que acordo, tingem o meu dia com uma aura estranha, alargando minhas visões corriqueiras, as coisas parecem caminhar tranquilamente, mas sinto que depois de sonhar assim algo não se encaixa. Tenho a impressão que falta uma peça, mas não sei qual.

Reitero que nossa rotina anda negligenciando vários planos da existência e que a expressão de sentimentos acabam restritos ao onírico, ou àqueles episódios dramáticos onde nossa interioridade transborda rompendo nossas barreiras conscientes. Por isso eu acredito que a arte seja um meio termo que permite o acolhimento destes sentimentos mudos, esfomeados que perambulam por nosso inconsciente.

Gosto de dialogar com meus sonhos, fazer-lhes algumas perguntas, tipo: por que um pântano? E rios? Essas visões aéreas de amplidões, crianças surfando e ao final uma contemplação maravilhosa... de onde estas cenas brotam?

Conversar com os sonhos é abrir novos caminhos de significação, contribuindo para um esgarçamento das fronteiras do Eu.

"Porque a maneira de reduzir o isolado que somos dentro de nós mesmos, rodeados de distâncias e lembranças, é botando enchimento nas palavras. É botando apelidos, contando lorotas. É, enfim, através das vadias palavras, ir alargando nossos limites.
...
Assim, o peão de culatra é bago-de-porco - porque vem por detrás. Pessoa grisalha é cabeça de paina. Cavalo corredor é estufador de blusa. Etc. etc." Lides de Campear - Manoel de Barros

Por isso penso os sonhos como rastros de coisas que moram aqui perto e compartilham esta existência comigo. Posso ver que um grande pântano não é apenas um lugar inóspito, mas pode se tornar o seu contrário - um lugar cheio de vida e beleza. De que maneira esta quebra de expectativa pode indicar outras realidades que me habitam? Ou quantos seres e vivências eu posso ter acesso adentrando meu próprio eu pantanoso, abandonado?

Falando de viagens oníricas, me lembrei de uma referência ao livro "Ilha de Sacalina" de Tchekhov que Murakami deixou em seu 1Q84:

"Ao redor não existem pessoas, aves, nem sequer uma mosca e, num local assim, há de se indagar: 'Para quem, afinal, essas ondas estão a bradar? Quem ouve este bramido todas as noites? O que essas ondas desejam? Para quem elas vão bradar quando eu partir?' Quando estou de pé diante desta praia, os pensamentos me abandonam e sou conduzido e aprisionado à profunda meditação. Sinto um intenso medo que se mescla ao desejo de permanecer ali para sempre, contemplando o movimento monótono das ondas e seus aterradores bramidos."

Esta citação ilustra o esforço de Tchekhov em conhecer os rincões de sua Rússia, ainda que tivesse de percorrer milhares de quilômetros com uma carroça, enfrentando condições climáticas adversas, possuindo um estado de saúde debilitado... Ninguém na época conseguiu entender o motivo da viagem, eu arriscaria compreender este esforço como uma ampliação de horizontes "internos", algo como deixar de lado um ambiente já culturalmente construído para buscar outras realidades, o que manifesta uma postura de acolhimento do diverso que enriquece nossa percepção das coisas, e, por fim, de nós mesmos.

Ainda sobre os moradores da Sacalina:

"Eles não possuem tribunais e tampouco conhecem o significado de justiça. E só pelo fato de eles, até hoje, não entenderem para que servem as estradas, pode-se imaginar a imensa dificuldade que têm em nos compreender. Mesmo nas áreas em que existem estradas, eles continuam caminhando pela densa floresta. É muito comum ver famílias e os cachorros, em fila indiana, andando com muita dificuldade no lamaçal próximo à estrada."

Podemos rir, achar engraçado esta gente não entender uma "estrada", coisa tão comum e útil para nós, mas
agora, eu me pergunto: quantas "estradas" existem entre nós que não nos fazem sentido? Afinal, ainda estamos surpresos com um "beijo gay" na novela, ou ainda achamos justo prender um adolescente nú a um poste, linchá-lo por supostamente ser um trombadinha, isto é ou não é caminhar pelo pântano da violência e de uma demonização do criminoso?

Por isso acredito ser importante cultivar um olhar estrangeiro sobre as coisas e sobre mim, através de meus sonhos, permitindo um diálogo agradável, as vezes angustiante, ampliando minha maneira de ser e de compreender sem me entrincheirar em um discurso familiar, onde eu, coincidentemente, sempre tenho razão.






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