Entre dois pecados
Gosto desta pintura de Prometeu olhando para o céu pensando... vai ter volta Zeus! |
(…)
Eu venerar-te? E por quê?
Suavizaste tu jamais as dores
Do oprimido?
Enxugaste jamais as lágrimas
Do angustiado?
Pois não me forjaram Homem
O Tempo todo-poderoso
E o Destino eterno
Meus senhores e teus?
Pensavas tu talvez
Que eu havia de odiar a Vida
E fugir para os desertos,
Lá porque nem todos
Os sonhos em flor frutificaram?
Pois aqui estou! Formo Homens
À minha imagem,
Uma estirpe que a mim se assemelhe:
Para sofrer, para chorar,
Para gozar e se alegrar,
E para não te respeitar,
Como eu!
Goethe – Prometheus
Ora, a serpente era mais astuta que
todas as alimárias do campo que o Senhor Deus tinha feito. E esta
disse à mulher: É assim que Deus disse? Não comereis de toda a
árvore do jardim?
E disse a mulher à serpente: do fruto
das árvores do jardim comeremos,
Mas do fruto da árvore que está no
meio do jardim, disse Deus: não comereis dele, nem tocareis para que
não morrais.
Então a serpente disse à mulher:
certamente não morrereis.
Porque Deus sabe que no dia em que dele
comerdes se abrirão vossos olhos, e sereis como Deus, sabendo o bem
e o mal.
Gênesis 3
Eis diante de vocês, queridos
leitores, dois pecados: o grego e o judeu. Se fosse possível
escolher, qual deles mais lhe apetecem a vista? Proporciono-lhes um
momento único, já que sempre nos debatemos com o pecado na versão
bíblica, o tal pecado original, escolher entre o bem e o mal. Bom,
ofereço-lhes a oportunidade única de escolher entre dois pecados.
Discutir a ideia de liberdade, nos
moldes que costumo encontrar, sempre me pareceu um debate no jardim
do Éden, coisa de seres curiosos e alienados que anseiam pisar no
tomate pra encontrar horizontes mais interessantes que os limites da
cerca da colônia de férias de Deus. Neste debate, conhecer é uma
ousadia, um pecado que representa sair dos limites da legitimidade,
do convencional, sendo o máximo da reflexão o tal... religião é
uma opção, não preciso de Deus. Mas tais sabedores não percebem o
inverno que se aproxima e, quando o caminho se torna íngreme,
começam a sentir nos ombros o peso de algo que eles julgavam um
fardo leve, a tal da autonomia. Quando o inverno chega, sentem nos
ossos o zero absoluto do desamparo, sem ter um templo para repousar.
O pecado grego já nos fornece um
horizonte diferente, pois parte da finitude. Aqui não existe esta
coisa anêmica que definimos como livre arbítrio, pois de cara os
homens são massacrados pelos deuses, sem consolo e sem direito a
colônia de férias. Que coisa podemos escolher? A menor ilusão de
autonomia desvanece ao primeiro raio olímpico e nada podemos fazer
diante de Moira e das fúrias. Que escolha teve Orestes diante do
assassinato do pai? Matar a mãe foi uma boa escolha? Aqui a
humanidade salta sobre abismos diante dos quais trememos,
paralisados. Diante da tragédia, como pode brotar alegria?
Contemplamos os gregos como que boquiabertos, nada nos é mais
estranho que as alturas gregas.
A sabedoria do pecado grego está em
não instaurar a culpa pela existência. Aqui, afinal, toco nesta
coisa gosmenta que eu nunca entendi, a doença ideal que chamamos
pecado original. A referência milimétrica do poema de Goethe
desvela este momento em que nos deparamos com a escolha entre dois posturas diante do real, entre a má consciência(deserto) e o trágico(Vida). Aos olhos do poeta, a
transgressão do titã nasce de um movimento voluntário, não de uma
molecagem juvenil nos moldes "Adão e Eva". Prometeu peita uma ordem
que entende como injusta, roubando a centelha olímpica para o mundo
dos homens. O ato é pleno de consequências, assim como a vida é
permeada de paradoxos, mas o titã não foi paralisado pela visão de
seu futuro trágico, ele pecou. Aqui pecar é existir também, só que a culpa se dissipa pelo alvorecer do ímpeto trágico.
A beleza do pecado grego é esta
humanidade indefensável que aceita todas as consequências e não se
exime delas. A perspectiva da punição não é capaz de alterar nem
uma vírgula do que sentem e desejam. Aqui, o querer salta sobre um
plano estético, não moral, calculado. E o que seria o querer senão
algo estético? Pode algum querer não ser condenável do ponto de
vista moral? Existe algum amor que não abarque todas as
consequências, por mais terríveis e dolorosas, até o mais escuro
inferno? Esse amor que esbraveja intransigente, mesmo em suplícios e cadeias,
contra os deuses é tudo o que eu não vejo no pecado versão Adão e
Eva.
A atuação do paradoxo é o consolo
que a tragédia grega nos proporciona de forma honesta, de uma tal
doçura para com humanidade que nos brindou com essa figura
titanicamente ensolarada que foi Prometeu. Na plateia trágica,
ninguém quer retornar para um paraíso perdido, pois um mundo sem
dor não é desejável e não é humano. Todos os ouvintes deste
espetáculo sabem que o paraíso que mana leite e mel é, na verdade,
o deserto da culpa e da renúncia do querer, logo, preferem de bom grado as
cadeias eternas à harmonia nirvânica do niilismo em forma de ideal.
Seria talvez esta a verdadeira escolha? Entre dois pecados?
Show! Esse texto ficou perfeito.
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