A poesia e o antimoderno



Descascando uma pera
Tenras gotas
Escorrem ao longo da faca

Shiki

Gosto de compartilhar minhas viagens com vocês, caros companheiros de vida. Se pensarmos a existência como sendo uma condensação espontânea de elementos e pulsações, acredito que nada do que está aqui comigo agora seja fruto de uma escolha fortuita do destino. Subimos de um fundo abissal e indefinido para contemplar o sol e as folhas caindo, rindo daqueles que caem de bicicleta ao nosso lado. Logo logo estaremos todos enterrados e seremos reabsorvidos pela mamãe Terra, qual outro fazer seria - diante desse quadro - mais importante do que o fazer poético? Apesar disso, acredito ser muito difícil nos aproximar da poesia em nosso dia a dia, quando pergunto... você gosta de poesia? Em geral as pessoas torcem o nariz e dizem que preferem um livro de histórias para depois assistirem o filme. Poucos decoram poesias - isso já não tem mais cabimento não é?

Este haikai acima eu tirei de um livro chamado Antimodernos, de Joseph de Maistre a Roland Barthes. Lendo este livro eu vou ficando feliz, pois me encontro finalmente do lado de um time, aaahh como é bom poder dizer que sou algo... sou antimoderno. Parece que com o passar do tempo vamos encontrando amigos por toda parte da história, vocês nunca encontraram brothers perdidos pela Grécia antiga? Isso me faz lembrar do Alquimista do Acre, talvez ele tenha encontrado no Giordano um grande parceiro; um descompasso divino, contudo, não permitiu a essas duas almas gêmeas o privilégio de sentar à mesa do bar para falar de amores, política, filmes.

Voltando ao haikai, o que vocês acham dele?

Vou dizer o que eu acho... Bom, quando uma fome suculenta me pega e eu lembro que tenho uma pera esquecida no fundo da geladeira, nada mais natural do que resgatá-la e, com uma faquinha de serra, cortá-la. Qual é a poesia disso? O que fez nosso querido Shiki olhar essa cena e fixá-la em três sentenças? Pensando um haikai, dizem que as duas primeiras sentenças apenas captam uma atmosfera familiar e ordinária, sendo a terceira uma espécie de golpe, tipo quando você está moscando embaixo de uma árvore e aquele amigo besta vem e puxa um galho só pra você tomar um banho... o haikai faz isso com a gente.

Descascando uma pera
Tenras gotas

Qual relação existe entre nós e a pera? Seria aquilo que os modernos entenderiam como uma relação sujeito-objeto right? Eu como uma pera, e é isso o que o haikai está reafirmando nestes trechos iniciais. Nada mais ordinário do que isso, é o que todos fazem diariamente. Nós comemos big macs, dirigimos carros, amamos pessoas, trabalhamos, bebemos água, tomamos um sol, fazemos várias coisas e consumimos outras tantas.

Escorrem ao longo da faca

Qual comunhão existe entre o sujeito e o objeto? Em qual ponto eles se confundem? Não seria nestas gotas que envolvem a lâmina? Neste sangrar que suja o metal existe uma comunhão sensual, algo que transgride a mera relação de consumo, algo que escorre e macula a pele da faca. No particular, neste momento nuclear que chamamos presente, se encontra o germe de toda a potência vital. Se nos atentarmos para o núcleo urânico que dizimou Hiroshima, dentro e fora se confundiram em níveis subatômicos, liberando quilotons de energia... Não seria o fazer poético esse desestabilizar de singularidades, o revelar de uma poderosa comunhão perceptível somente ali, aos olhos do poeta?

Nas palavras de Compagnon:

"O poema tem a faculdade de salvar o mundo porque ele é assentimento - discreto, particular, residual - ao ser. Mesmo que isso não surpreenda um leitor de Bonnefoy ou de Jaccottet, é o que o haikai ensina a Barthes: "O haikai é assentimento ao que é", ou seja, presença no limiar da ausência, presença desligada da ausência. Satori (zen), kairos (os céticos), epifania (Joyce), momento de verdade (Proust), instante prenhe (Diderot), incidente, tais são os nomes que Barthes dá ao poema, cuja intencionalidade é - belas impressões - "tirar o melhor da realidade", "capturar uma lasca do presente". O poema "captura ao vivo" a vibração do mundo, como um "acordo instantâneo entre o que é visto, observado, e o que é escrito", ou ao menos ele transmite esse sentimento, pois é sempre produzido mais tarde, pela Memória, fosse por uma "memória imediata" no caso do haikai." pg 451

Quando eliminamos a poesia do registro de nossas vidas e a substituímos por um discurso que se pretende descritivo e asséptico, neutro, livre de subjetividades, objetivo, estrutural ou algo parecido, estamos cortando todos os laços vitais que nos conectam ao real e ao presente. Creio que estamos reduzindo o discurso à expressão de relações de consumo e de produção, pois tentamos explicar com o máximo de detalhes os nossos gostos ao mesmo tempo em que dizemos aos outros como usarem nosso potencial de trabalho. Logo, usamos as palavras para consumir e para nos tornar produtos.

O destino do empreendedor de si é se tornar produto para os outros, pavimentando essa via crucis com as palavras.

Diante deste cenário, onde as palavras se resumem a rótulos, gostaria de deixar minhas palavras como manifestações de vida e de revolta contra esta desertificação da alma em larga escala, como uma pedra de tropeço nesta via de palavras uniformizadas. Que aqueles que nos leem possam encontrar o descanso de um interlocutor presente, um "under-stand" possível.

Encerro com palavras de Barthes:

"a Poesia deveria fazer parte dos 'Direitos do Homem'; ela não é 'decadente', é subversiva: subversiva e vital". pg. 450



      

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