Qual é o preço de sua sombra?

Illustration to accompany a 1918
Danish edition of Adelbert von Chamisso's Peter Schlemihl

Hoje, conto-lhes a maravilhosa história de Peter Schlemihl.

Este jovem encontrou um senhor muito elegante e prestativo que lhe ofereceu uma bolsa de ouro mágica, capaz de fornecer quantias inesgotáveis de ouro, em troca apenas de sua... sombra.

Tudo é muito rápido, porque o jovem prontamente aceita a proposta, quem não aceitaria? Pra que serve uma sombra afinal? Já o ouro, humm, pode mudar tudo, nos dar luxo e conforto, em outras palavras - tudo de bom!

Como vocês provavelmente intuíram, as coisas não acontecem como nosso herói previa, pois as pessoas aparentemente não toleram quem não tem uma sombra! Ele é escorraçado do convívio publico e consegue sair de seus ricos aposentos apenas em noites sem luar. Schlemihl se encontra incrivelmente rico, mas incapaz de estabelecer vínculos humanos. Consegue conversar apenas com seus criados e vive amedrontado, temendo que seu segredo venha a destruir os poucos vínculos que conseguiu construir.

Qual é a moral da história? Não venda a sua sombra, ela pode ser muito importante? Já que normalmente não conseguimos perder a sombra, como o maravilhoso da história indica, qual é a mensagem que o autor quer passar? Na época, Adelbert von Chamisso recebeu muitas perguntas a respeito do que seria a sombra e qual era a mensagem que ele queria passar com essa história, percebendo o espanto das pessoas e sua incapacidade de fantasiar a respeito do que seria a sombra, Chamisso responte aos questionamentos pela leitura de uma definição de "sombra" encontrada em um dicionário erudito:

“Da sombra – Um corpo opaco não pode jamais ser iluminado por um corpo luminoso senão parcialmente e o espaço privado de luz, que está situado no lado não iluminado, é o que chamamos sombra. Assim, a sombra propriamente dita representa um sólido cuja forma depende ao mesmo tempo da do corpo luminoso, da do corpo opaco e da posição deste em relação ao corpo luminoso. A sombra considerada sobre um plano situado atrás do corpo opaco que a produz, não é outra coisa senão a secção deste plano no solido que representa a sombra.”

Após esta definição, digamos, levemente materialista, Chamisso acrescenta:

“É deste sólido que se trata na história maravilhosa de Pierre Schlemhl. A ciência das finanças instrui-nos suficientemente sobre a importância do dinheiro; a da sombra é menos reconhecida no geral. Meu imprudente amigo cobiçou o dinheiro, cujo valor ele conhecia, e não pensou no sólido. A lição – que pagou caro – ele quer que nós aproveitemos e sua experiência nos conclama: Pensai no sólido!”

O valor da bolsa de ouro todos nós conhecemos, agora, qual é o valor de nossa sombra?

Seria sábio trocar algo cujo valor desconhecemos para obter algo que o mundo valoriza? Quando divulgamos nossa intimidade nas redes sociais em troca de likes e admiração de colegas e desconhecidos, sabemos o que está em jogo nessa troca? Quando obedecemos as normas e agradamos nossa família, amigos, chefes, padrões sociais, sabemos o valor das coisas que estamos abrindo mão para nos tornar aceitáveis e normais? Se pensarmos no progresso e na exploração de nossos recursos naturais para alavancar o crescimento econômico, sabemos o valor disso que estamos sacrificando quando sulcamos o solo e poluímos rios e a atmosfera? 

Olhando com mais cuidado para a definição de sombra, podemos perceber que tudo que não possui luz própria é composto de uma parte iluminada e uma silhueta escura, basta olharmos a Lua e suas fases em contraste com o Sol - sempre resplandecente. Qual é o valor das coisas que desconhecemos em nós? Qual é o valor do estranho que nos habita? Daquelas coisas que fazemos e que são incompreensíveis e dolorosas, daquela parte de nós que é incomunicável e avessa às convenções... do desconhecido vital? A sabedoria dos afetos incomunicáveis... onde ela se encontra hoje, em um mundo onde tudo pode ser trocado e monetarizado? 

Neste momento me vem à cabeça a cena de um filme chamado “Demolição”, onde Jake Gyllenhaal interpreta um homem bem sucedido que perde a mulher em um terrível acidente de automóvel, estando ele no carona momento do acidente e saindo milagrosamente ileso. Tudo começa a ficar estranho quando o personagem precisa organizar o funeral da esposa, pois ele visivelmente não está abalado, continua trabalhando como se nada tivesse acontecido e em uma cena curiosa ele se olha no espelho durante o velório tentando encenar uma cara de choro. A secretária tenta o consolar e ao fim de sua fala, ela quase aos prantos, ele simplesmente pede um relatório contábil. Em pouco tempo seu sogro passa a hostiliza-lo, pois acredita que ele não sentia nada pela filha.

A forma como o personagem reage a sua tragédia familiar é desmontar tudo o que encontra pela frente ao som de "crazy on you". Ele literalmente cai aos pedaços porque não consegue chorar, não consegue articular afetivamente a perda irreparável da mulher. Aqui chegamos ao ponto em que percebemos o triste quadro de um homem que não precisava mais dos afetos, nem de uma vida subjetiva, nem de florestas, intimidade, arte... afinal, tudo poderia ser trocado, poupando dores desnecessárias.

Sabemos o valor das coisas que estamos sacrificando para que o mundo continue como está?

Sabemos o valor de nossa sombra?





  

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