Como perguntar o que realmente importa sem ser espiritual?


Acompanho um programa de radio chamado On Being, realizado por Krista Tippett e a chamada de seu programa é: Quem somos nós? Por que estamos aqui? Para onde estamos indo?

Este programa de radio é tão maravilhoso que eu me pergunto todas as vezes que eu escuto: por que não temos nada parecido aqui no Brasil? Por que é tão difícil falar sobre espiritualidade sem ter que apresentar mil poréns e ressalvas, por que a espiritualidade não faz parte de um espaço de debates sobre o caminho que a realidade está tomando? Por que as pessoas não podem comentar sua espiritualidade sem ter que explicar suas preferências religiosas? Por que a religião se tornou algo restrito ao foro íntimo, como mais uma preferência entre tantas que escolhemos? Como se ela fosse algo que habitasse a esfera da opinião e não da ética.

Neste programa já ouvi um debate entre pastores sobre a interferência do cristianismo na política, já ouvi o Dalai Lama respondendo perguntas do auditório, um cientista cuja obra margeia a poesia, um pastor que adapta a mensagem bíblica para que pessoas carentes possam entender, um psiquiatra que atende pessoas que passaram por traumas severos, meditadores budistas... toda essa diversidade transitando tranquilamente através de uma troca de perguntas que não fica em momento nenhum no âmbito da trivialidade, mas avança sobre a vida e as questões que carregamos dentro de nós.

Eu acredito que exista uma ojeriza com relação ao espiritual na contemporaneidade, como se toda religião fosse um bastião da ignorância e da luta contra a razão. É claro que existem infinitos exemplos de como a religião instituída combateu mentes brilhantes e o avanço da ciência, mas não devemos perder de vista que a religião também sempre foi perseguida e desacreditada por diversas partes da sociedade no decorrer da história. Quando Krista entrevistou a Maria Popova (do site Brain Pickings) ela perguntou como ela percebia a espiritualidade tendo nascido em uma nação que foi integrante do bloco comunista (Bulgaria). Isso é interessante, porque poucas pessoas entendem como era ser religioso no bloco soviético e como a ideologia comunista tentou varrer a religião do mapa.

A ciência em geral acredita ser a religião apenas uma ilusão compartilhada. Não raramente vejo amigos postando comentários como se a religião fosse algo que lutasse contra a ciência. Essas pessoas ainda não notaram que toda a educação organizada teve início através de iniciativas da religião (é essa palavra mesmo - RELIGIÃO), da criação das primeiras universidades até as igrejicas evangélicas da esquina que oferecem alfabetização e cursos bíblicos para seus membros, em geral pessoas humildes. Aí eu penso, qual departamento de literatura construiu classes na periferia para apresentar autores da literatura para as populações carentes? Qual faculdade de música oferece cursos, oportunidade para crianças e adolescentes aprenderem a tocar um instrumento? Qual instituição apresenta a necessidade de se aprender a cantar? A igreja faz isso há tempos e raramente reparamos nisso, pois preferimos falar mal do Malafaia.

Toda religião possui cantos e danças, apresentações e leituras. Tudo isso movimenta o imaginário das pessoas, faz com que elas percebam a maravilha de compartilhar algo, qualquer coisa que seja. Isso cria necessidades salutares, apesar de tudo - poderia dizer. A pessoa que vê uma pregação cativante vai querer ler e estudar para falar como fulano de tal e quando ouvir ciclano cantar vai procurar uma aula de canto. Quais setores da ciência patrocina esse despertar dos jovens pela expressão do conhecimento e da arte? Aaaa mas tudo isso cria uma multidão de alienados! O meu pai é um alienado que estuda diariamente a Bíblia e eu nunca vi alguém amar mais algo do que ele ama seus livros e estudos, que vai de temas como exegese à hermenêutica, história antiga, grego, hebraico, linhagens de traduções... coisa que só fui achar equivalente no departamento de filosofia antiga da USP. Portanto, existem exceções e se existe uma massa manipulada por líderes espirituais isso decorre tanto de nossa cultura quanto de Deus, afinal, multidões invadem as lojas no black friday, assistem o final do BBB, apoiam o Bolsonaro... a religião pode até ter inventado o movimento de massas, mas isso não é só culpa dela, vide história do séc XX.

Eu adoro a Krista porque ela joga aberto, sem defesas. Podemos fazer isso no Brasil ao falar de espiritualidade e religião? Acho difícil.

O espiritual faz vibrar as minhas entranhas... quando eu ouço a fala de um nativo americano que diz que "água não é um recurso, ela é a fonte da vida" eu sinto o espiritual mover o meu íntimo a concordar - sim! É isso caralho! Lágrimas correm e eu percebo o quanto nosso discurso técnico científico desumaniza tudo que nos cerca... a falta de uma perspectiva espiritual desumaniza tudo! Por que isso ainda não está claro? Por que precisamos de mil ressalvas para tratar disso em público?

Precisamos falar sobre as grandes questões da humanidade, agora, como fazer isso sem ser espiritual!? Como? No mais, não tente me convencer que é uma questão de coragem intelectual crer que a vida é um amontoado de células ou um ponto ocasional do percurso histórico do universo, não venhamos a cair na tentação de reduzir a vida à majestosa mediocridade da modernidade. Vamos além, nós precisamos ir além.    

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