Histórias que nos ajudam a encontrar o caminho - O pastor e o boi

Me fascina o cuidado que as civilizações antigas despendiam aos seus iniciados e jovens. Eles tinham em vista que a entrada na vida adulta não é algo fácil, ao contrário da nossa cultura que aparentemente vê as transições como coisas que devem ser resolvidas pelo próprio indivíduo, a pretexto de resguardar-lhes o sagrado ideal de liberdade. Mas, ao final, todo este nobre descuido se revela como uma forma velada de covardia para com os mais jovens, prova disso é a maneira como nos dirigimos a eles, com perguntas do tipo: já decidiu o que você vai ser? Já arrumou uma namorada (o)? Quando você vai trabalhar? Etc. Esse tipo de questionamento indica o quanto estamos distantes e acreditamos estar a salvo das dúvidas e limbos existenciais. Estamos acostumamos ao diálogo de pressão e cobrança, como se os jovens tivessem a obrigação de alcançar o olimpo de nossos preconceitos, como se a nossa única tarefa nisso fosse o de avaliar, aprovar ou desaprovar, dizendo um: muito bom! Ou um.. sério isso? Isso não está bom, é melhor você fazer isso ou aquilo.

Por isso decidi pesquisar uns manuais de iniciação da antiguidade e colocar aqui no blog, apenas para dar a vocês um pouquinho da riqueza didática de outras civilizações, tendo em vista que a educação está se tornando um tipo de fabrica de pessoas bem adaptadas. Parece que nosso ideal máximo de educação é algo parecido com o programa master chef, tarefas+pressão e depois elegemos um sabichão que dirá quem é o melhor e quem será eliminado. Por que não assumir que todos estamos perdidos e procurar uma ajudinha daqueles caras bem bacanas da antiguidade? Meus próximos posts vão seguir essa linha. 

Existem muitos comentários sobre esses quadros Zen e para maiores detalhes você pode encontrar googlando, sabendo disso, gostaria de mochilar pelas imagens sem guia turístico. 

A procura do boi
Nesse quadro podemos ver um homem perdido, andando para um lado e olhando para o outro. As interpretações associam este quadro com a tomada de consciência de nosso desamparo diante da existência, quando olhamos para nós mesmos e pensamos - e agora? Acho que todos nascemos perdidos e no decorrer da vida vamos ficando, talvez, menos perdidos. A impressão que tenho é que nascemos no meio de um jogo em andamento e, pra piorar o quadro de cachorro que caiu da mudança, desconhecemos as regras e nosso papel. Vamos imitando aqueles que estão perto da gente e no final tudo parece caminhar, sendo que nunca chegamos a perder completamente aquela impressão de fundo que sussurra - mano, whatahell eu tô fazendo aqui!? 

O encontrar das pegadas do boi
No segundo quadro o pastor acha rastros, isso parece ser uma descoberta e tanto para alguém que nem sabia o que procurar, agora sabemos que é um boi. A caminhada tem uma direção clara, estamos na expectativa de encontrar algo e tudo parece ser uma questão de esforço e tempo para alcançar o boi perdido. Um palpite seria que essa é aquela fase da vida em que nos fodemos de uma forma que não podemos contornar, somos obrigados a buscar ajuda e nisso vamos em direção de algo que julgamos ser a cura, algo que faça a dor parar - pode ser macumba, Jesus, psicanálise... não necessariamente nessa ordem - e assim seguimos a trilha do sofrimento, acreditando que no final encontraremos a cura. Para aqueles que não fazem ideia do que fazer da vida, descobrir-se perdido é um bom começo.  

O encontrar do boi

O terceiro quadro podemos ver uma parte do boi, a bunda, mais especificamente. O que isso quer dizer?Nunca parei para pensar no que a bunda significa na mitologia antiga, nem a bunda do touro na tradição zen, mas existem outros desenhos da mesma historia onde o boi vai gradativamente mudando de cor, o que me faz pensar em uma progressão, como se fossemos descobrindo aos poucos o que desejamos e uma parte nos leva para a próxima, até podermos ter uma noção do que nós queremos da vida. Aí, quando descobrimos algo ficamos deslumbrados e caímos de cabeça, lemos tudo a respeito, topamos todos os sacrifícios malucos, arrumamos uns gurus, vemos uns documentários... até construir uma imagem do mundo que faça sentido, por isso, talvez, o touro se confunda com a paisagem. Na antiguidade isso era o cosmos, e a vida do indivíduo só passava a fazer sentido quando conseguia se integrar nessa ordem que era o pano de fundo da vida. Frase típica neste quadro: "Aaa agora tudo faz sentido" 

A captura do boi
No quarto quadro, começa a pancadaria real - laçamos o boi! Muito esforço e trabalho para controlar esses impulsos que nos empurram para fazer coisas que não queremos (os velhos hábitos). O apóstolo Paulo dizia que o mal que ele não desejava, esse ele fazia, enquanto Winnicott diz que o jovem sofre para cavalgar os afetos, o touro aqui pode simbolizar a força dos afetos e desejos que nos jogam no chão muitas vezes na vida. Outros dizem que o touro simboliza a carnalidade, o corpo e o universo material. Toda prática ascética, como religiões ou escolas, normalmente afirmam o corpo como algo indigno, exaltando o conhecimento e o controle dos afetos, algo que não me cheira muito bem. Ao meu ver este quadro simboliza o momento em que saímos da posição de ouvinte para começar a atuar, sendo que a verdade ainda está em construção e ainda não podemos contemplar a face do que estamos enfrentando. A luta começa e podemos sentir a força do boi, somos derrubados, a coisa parecia fácil na teoria, mas quando o despertador toca ou sentamos para meditar, sentimos que não somos tão determinados quanto imaginávamos. Vamos, aos poucos, conhecendo nossos medos e vencendo desafios. 

O domar do boi
Depois de muito treino - uau! - conseguimos fazer as coisas sem nos matar tanto, aprendemos os macetes da vida, sacamos os atalhos e sabemos o que fazer quando os problemas aparecem - ganhamos intimidade com as coisas. Contudo precisamos manter a rédea, pois a experiência nos ensinou a não confiar demais na vida. O pastor parece caminhar de volta para casa, isso indica que a brincadeira acabou e estamos voltando para a origem, o ponto onde tudo começou. Neste momento o homem guia o touro, enfim, estamos no comando e aquilo que no princípio estava fora de alcance, está se tornando um hábito. Imagino que este seja o momento em que passamos pela maioridade e nos encaminhamos para aquela fase da vida em que precisamos nos haver com o passado.   

O retorno para casa no dorso do boi
O sexto estagio o pastor consegue cavalgar o boi e toca a sua flautinha, até o boi parece feliz. Segundo a tradição Zen, esse é o momento em que a dualidade encontra a harmonia - o boi e o pastor são um. Neste momento as coisas começam a mudar. A energia consagrada a controlar os afetos passa a ser usada de forma criativa e a alegria surge como fruto dessa harmonia. Nosso pastor nunca havia sonhado que as coisas poderiam ser assim e que ele poderia baixar a guarda sem ser derrubado no chão. Me parece que a alegria desse tipo é diferente das outras alegrias, pois normalmente a alegria nos beija e desaparece, de forma que sempre ficamos com o pé atrás e pensamos: "será que é comigo mesmo!? Aaaa que pena que amanhã é segunda." Esse tipo de alegria ainda está no quadro 4, temos que trabalhar para conseguir um pouquinho de diversão e, logo, tudo passa e ficamos tristes.

Não mais sujeito às vicissitudes da vida, percebendo como todas as coisas se integram e participam umas das outras, tudo passa a ser um e o conflito que antes existia pelo controle do boi não possui mais razão de ser. Neste ponto não faz mais sentido culpar os outros, a vida, o carma, Deus... Não existe injustiça, ninguém violenta alguém sem se expor a mesma violência, ninguém está na frente ou melhor do que o mendigo esquecido para congelar na noite de inverno - todos partilham da mesma condição humana. O fato de que existam mendigos congelando tem mais a dizer sobre nós enquanto sociedade, do que sobre a história pessoal do indivíduo que se encontra marginalizado. 

A verdadeira felicidade só encontra lugar em nossas vidas quando percebemos nossa conexão com o todo, quando dissolvemos o conflito dualista e conseguimos encontrar uma harmonia com o mundo e com aqueles com os quais convivemos.  

Isso quer dizer que nada vale a pena? Não precisamos lutar por uma vida melhor e reivindicar nossos direitos? Podemos dizer que a unidade só é compreendida a partir do sexto quadro e isso não é a toa, logo, todos os quadros são necessários e nenhum estágio pode ser pulado. Esses quadros me fazem pensar no que Jesus pensou quando construiu sua última cadeira, ou do que Buda sentiu quando caminhou solitário pelos corredores de seu palácio. Todos os passos são importantes, a pergunta que fica é: em qual quadro estamos?   

Eu vou fechar por aqui esse post, ficam faltando quatro estágios.   

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