O nada não é o fim

Retomando a série "histórias que nos ajudam a encontrar o caminho" gostaria de fechar a parte sobre o conto budista do pastor e do boi passando pelas últimas estações. Nestes quadros existe uma temática um pouco diferente dos primeiros, pois precisamos nos haver com o vazio e o nada representados pela oitava estação. O nada é uma sofisticação do pensamento oriental cuja significação nos escapa completamente, já que estamos presos à frase da lógica clássica "o ser é o não ser não é" atribuída a Parmênides.

Por que comecei por esse esclarecimento? Bom, normalmente ficamos meio perdidos quando ouvimos uma história Zen, sentimos que as coisas não batem e não existe moral da história. Aí, normalmente, dizemos que o Zen é estranho, sem sentido, e, no máximo, conseguimos dar uma risada. Um grande aprendizado Zen é perceber que a lógica não é capaz de captar a existência, por isso, a maioria de seus contos generosamente nos apresentam as tramas e esgarçamentos do ser e da lógica.

O Boi é esquecido e o Pastor continua

Na estação sete vemos o pastor sozinho, ao lado de sua cabana contemplando o céu em reverência. Esse momento alcançamos o ápice do movimento iniciado no primeiro quadro. O boi já não figura mais, foi esquecido como se o pastor tivesse encontrado o si-mesmo - a identidade - e as dualidades foram finalmente ultrapassadas. Seguindo o roteiro de um filme hollywoodiano, aqui estaríamos diante do final apoteótico, a bem aventurança e a concretização de todos os esforços e práticas religiosas que permitiram ao pastor encontrar o verdadeiro eu, oculto sob a forma do touro.

Para o Zen, o sétimo quadro é a borda do trampolim para o nada. Isso me faz lembrar dos filmes de pirata, de quando os mocinho é empurrado para a prancha, ou do final do filme "O tigre e o dragão" onde os protagonistas se lançam no ar. Estas cenas mostram o momento de contemplar o abismo, sendo difícil para nós não associar isso com a ideia de morrer.

O completo esquecimento do Pastor e do Boi

O título do oitavo quadro é "O duplo esquecimento" ou o "Completo esquecimento do Pastor e do Boi", sendo representado por um circulo vazio. Creio que a negação absoluta é representada pela ausência completa de figuras, nada é desenhado em contraste com o figura idílica do pastor iluminado na sétima estação. Estes dois quadros se compõem para a expressão do "morrer maior".

"Todas as cobiças do mundo são abandonadas. Ao mesmo tempo, o sentido da santidade esvaziou-se completamente. Não se sinta bem no lugar onde o Buda mora. Passe depressa pelo lugar onde não mora mais nenhum Buda."

Continuando as palavras de Shizuteru Ueda: "Em um golpe só, o grande céu se rompe em escombros. Sagrado e mundano desaparecem sem deixar vestígios"

O que me agrada no budismo é essa agressividade bruta oculta sob a fachada do pacífico monge, devorando tudo, inclusive o sagrado, Buda, o bem e o mal. Tudo é vaporizado e aspergido sobre uma nova criação, integrando a ideia de movimento ao ser. O ser parado é o ser sem o nada, o ser lógico-substancial. Por isso Nietzsche diz que uma vida pautada na razão não pode ser mais do que niilismo, pois o arranjo ideal das coisas morre no sétimo quadro, sem conseguir integrar o nada. Assim, o único desenlace possível para o universo, aos olhos da física por exemplo, é um fim gélido e escuro, já que nada escapa à entropia.

O que a contemporaneidade prova como "morte de Deus" é um sinal de que ainda não conseguimos digerir o nada em sua radicalidade, algo que os budistas humildemente ensinam há séculos. Esse "retorno do recalcado" se manifesta em nosso pessimismo com relação ao futuro, nas infinitas tentativas do homem de substituir o lugar esvaziado de Deus(via avanços tecnológicos e seus delírios de onipotência), perpetuando a ideia de que o nada é a negação da substância - o negativo do ser - e não sua afirmação.

O retorno para a origem

"As flores florescem como florescem por si mesmas; 
O rio corre como corre por si mesmo"

Quando observamos o próximo quadro, percebemos a natureza fluindo, plantas florescendo e um rio correndo. Isso é o nada e o ser integrados - a vida que emerge como movimento puro, superando todas as distinções e o mergulho no vazio da oitava estação. A natureza é um enfrentamento bruto do vazio que nos assusta e do qual nos mantemos à distância. Isso me faz pensar na beleza das coisas, na coragem da vida e de seus filhos avançando através de tudo, inclusive da morte. A água do ribeiro não hesita diante do precipício, se lança no vazio continuamente.

Essa imagem não é uma metáfora de uma interioridade pacificada, mas é o próprio emergir do ser a partir de um segundo nascimento fruto da passagem pela negação absoluta do oitavo quadro.

"O rugir dos leões, o uivar dos lobos, o bramido do mar tempestuoso e a espada destrutiva são porções da eternidade demasiado grandes para o olho do homem" Willian Blake


O entrar no mercado com mãos abertas

"quem quer se tornar uma criança deve superar sua juventude"
Nietzsche citado por Shizuteru Ueda

É interessante que todo o percurso dos quadros, entrecortados por temáticas complexas, termine com um velho barrigudo, daqueles que vivemos encontrando pelos botecos, conversando com um garoto rindo, parece que ele vai pegar uns amendoins na cestinha do velho. Existe a ideia de que este velho sorridente é uma parte de nós que encontramos quando amadurecemos e seria seu papel nos ofertar sabedoria e abnegação, sem sair, é claro, da vida cotidiana. É bacana essa ideia de que a iluminação não é um caminho rumo aos céus orgásticos das religiões, mas é um ir ao mercado comprar peixe. Para aqueles que ainda não entenderam bem esse lance todo de dualismo e não dualismo, basta olhar para essa figura e notar que um homem velho, gordo e careca, sorri sem fazer questão nenhuma de esconder a pancinha peluda do público. Essa é a alegria despojada que transcende os dualismos, coisa linda de se ver. Alcançar esse ponto só é possível depois de passarmos por todos os quadros, de viver e enfrentar todas as alegrias e desafios que cada estágio oferece.

Creio que essa figura simpática é um equivalente do que existe de humano na natureza, algo que representa a exuberância da vida, ofertando seus produtos para o jovem recém chegado a trilha da existência. E isso tudo acontece com cada um de nós, esse encontro sagrado habita todos os encontros que travamos em nossa história. Acho que se existe um sentido nessa vida, só descobriremos conversando com outras pessoas.

O humano deixa de ser o oposto da natureza, assim como o outro não é mais o oposto do eu. E todo esse milagre está acontecendo logo ali, na feira de sábado que você adora ir pra comer pastel do japonês. Quem sabe o vendedor não é uma pessoa iluminada?

Quando ele perguntar: de onde você vem? Como está você? Você vê as flores?
O que você responderá?    


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