Não sabem que chove

No saben el caminho - Goya

"Escurecia. Nuvens cobriam a lua; uma chuva fina tamborilava no telhado nas primeiras horas da manhã, e a luz das estrelas e a luz da lua e toda a luz do céu e da terra se apagara. Nada podia sobreviver ao dilúvio, ao derramamento, à tromba d'água de imensa escuridão que, insinuando-se pelos buracos da fechaduras e pelas frestas, metia-se pelas venezianas, atingia os quartos, e engolia, aqui um jarro e uma bacia, ali um vaso de dálias rubras e amarelas, acolá as agudas quinas e o sólido corpo de uma cômoda. Não era só a mobília que se desintegrava; não restava quase nada de mente ou corpo pelo qual se pudesse dizer "isso é ele" ou "isto é ela"..."  Virginia Woolf

Estou aprendendo a contemplar as coisas graças à meditação. Paro e observo, respiro. A meditação nos permite ser de forma menos verbalizada e isso acaba alterando a forma como conduzo minha vida no dia a dia. Quando entro em um metrô ou ao adentrar uma sala de aula, percebo que estamos em um lugar, mas as coisas que falamos e sentimos estão completamente apartadas. As vezes me sinto caminhando em marte. Falamos de várias coisas, problematizamos comportamentos e preconceitos, mas não consigo perceber aquele aperto visceral que nasce no baixo ventre, subindo pelo diafragma, um aperto que afronta a expansividade do coração e que está presente em todos os passos do meu dia. 

Estamos todos perdidos, conseguiremos admitir? 

Somos algo em torno de 7,5 bilhões de pessoas no planeta, encenando o tema bíblico dos cegos que guiam outros cegos. Proliferam palestras, porquês e 10 maneiras de fazer qualquer coisa. Estamos vivendo a era da informação e não conseguimos perceber algo banal como uma chuva. Uma chuva existencial.  

Sinto uma chuva caindo pesada, ininterrupta. Tudo está se dissolvendo e isso não é algo discursivamente inteligível. Não podemos discutir a chuva em sua constância, subvertendo todas as coisas. Ela deveria ter parado em algum lugar do passado, só que não parou. Ela insiste em inundar tudo, arrastando pontes, acordando os sonolentos, levando nossos bens, nossa casa... "a chuva levou tudo o que eu tinha" diz o triste senhor na tela da TV. Essa fala costumava nos consolar inconscientemente, pois dizíamos em nosso íntimo - ainda bem que não é comigo. Será?

Quantos gêneros sexuais existem no momento? Quantas formas de ser e desejar existem? Quantas formas de existir? As coisas não estão se dissolvendo apenas no nível dos sexos, a cheia tem alcançado políticas, filosofias, nações, culturas, famílias, ecossistemas o clima. Essa não é apenas o mundo líquido do bom velhinho Bauman, pois acredito que o humano não é a origem dessa liquefação. Essa chuva está caindo sobre tudo e nós não podemos perceber(compreender, abarcar) a extensão do que está acontecendo. 

O rio está subindo e isso é aterrorizante, os afetos vão nos puxando por dentro, submergem nossas vísceras e tudo que podemos fazer é construir diques, muros, piscinões. Como vocês sabem, águas pelo meio das canelas levam facilmente a melhor dialética para o ralo, e eu me pergunto se conseguimos, de fato, falar sobre o que está acontecendo. Conseguiremos acompanhar as vazantes do ser sem ser desalojados de nossas velhas casas? Aqui, percebemos porque reagimos com tanta violência diante dos desalojados existenciais, eles nos lembram que o rio está subindo e que novamente precisamos pegar a estrada.

Reagimos com violência para defender ilusões queridas, ilusões desmentidas pelos refugiados, pelos exilados. Ninguém quer se perceber exilado, pois o exilio nos sussurra que nossas caríssimas ilusões estão dando seus últimos suspiros, elas estão submergindo e tão logo elas sejam arrastadas pelas águas, estaremos de volta ao início, ao ponto em que o desamparo nos cercava e não tínhamos ainda um lugar no mundo. 

Como dialogar com a contemporaneidade se não estivermos dispostos a perder nada? É algo muito difícil deixar velhas crenças, abandonar o navio, perder tudo do dia para a noite - não conseguimos decidir abandonar o conforto de um lar(nossa confortável rotina) apenas por bons argumentos, não é assim que funciona. Tomamos decisões quando a tempestade se avizinha, quando ela se torna insuportável. É assustador, nosso sangue está amuado... avança com medo, cabe ao coração manter o ritmo, vibrar a despeito de tudo.  

O rio continua subindo. Isso é bom ou é ruim? Não sei, creio que seja difícil dizer e nem sei se precisamos responder. Importante é perceber a chuva e como a paisagem está mudando. Nunca teremos uma morada fixa e sempre seremos um pouco náufragos caminhando em uma terra estranha. Continuo meu exercício de buscar referências, de ver até onde o rio chegou. Reúno verdades e sementes de sonhos em minha bolsa, infelizmente, nossa casa está com os dias contados.  

Precisamos estar dispostos a abandonar nossas ilusões para perceber o grande rio da vida. 





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