O fim do juízo



Ouvi algumas pessoas comentando sobre o fim do mundo, de um alinhamento celeste que aparecia em uma passagem do Apocalipse bíblico. Saber que algo do Apocalipse está acontecendo nos dá um certo calafrio já que o livro em questão é famoso pelas tragédias que habitam suas páginas. As poucas coisas que fazem sentido neste livro da Bíblia é que coisas ruins vão acontecer no final da história judaico cristã, mas isso só para aquelas pessoas más que não são nem judaico nem cristãs. Terremotos e furacões, guerras e pestes ceifando as vidas de frações da população terrestre são parte do anticlimax que Deus preparou para aqueles que não pensam igual Ele. Tudo isso, claro, faz muito sentido se ligarmos o noticiário; o que me faz pensar o quão cristão é o nosso jornalismo e o quanto estas instituições reproduzem uma retórica moralista que busca convencer as pessoas de que muitas coisas ruins acontecem e que "fazer nossa parte" consiste em condenar tudo isso que anda acontecendo. Isso me lembra aquela cara de jornalista decepcionado com a maldade humana, como o William Bonner faz quando fala da lava jato... ó políticos, ó bandidos! Até quando vamos tolerar isso??

"Porque a Revelação, seja dito de uma vez por todas, é a revelação da imperecível vontade de poder que há no homem e a sua santificação, o seu derradeiro triunfo. Mesmo que precisemos de sofrer o martírio e nessa mesma ocasião todo o universo tenha de igual modo, de ser destruído, ainda assim, ainda assim, ainda assim, ó Cristão, irás reinar como um rei e assentarás o pé no pescoço dos velhos patrões!" Apocalipse pg.20

Compartilho com D H Lawrence o ponto de vista de que o Apocalipse é uma revisão de mal gosto de toda mitologia pagã da época de João. O escritor abandonado em Patmos mobiliza a imagética pagã para judicilizar o mundo e torná-lo o palco de um grande julgamento, cujo centro é a tribo de Israel. Isso é uma amostra do que o noticiário nos oferece todos os dias quando transforma todas as questões existenciais em decisões de juízes, revisões de leis e códigos, dando indícios de que precisamos desesperadamente submeter o mundo à um drama moral de quinta categoria cujo protagonista é o indivíduo contemporâneo e seus medos. O quão tranquilizador é pensar que tudo é matéria prima para um processo a ser decidido por uma pessoa competentíssima, com vários livros ao seu redor? Estaria eu falando do STF, não! Estou falando de Deus(juiz, tanto faz..rs). Saber que nada passará em branco e que tudo será usado contra nós em um futuro julgamento masoquista...quantas vezes ouvi pregadores de metrô dizerem isso?

Algum tempo atrás descobrimos um prazer secreto, o prazer de ser o centro das atenções em um julgamento, importando muito pouco se somos inocentes ou não, mesmo porque ser culpado é muito mais excitante, afinal, que graça teria uma vida sem julgamentos e sem culpados? Creio que os judeus usaram isso em larga escala em sua narrativa, algo que Hollywood também soube explorar muito bem, sendo que quase todos os filmes e séries possuem um grande julgamento enxertado em sua trama para fisgar a atenção dos espectadores. Chega a ser maçante essa insistência em transformar a vida em um processo judicial sem limites, uma masturbação que atinge seu clímax no Apocalipse bíblico.   

Creio que essa incompetência dramática que aflige nossa geração é a grande responsável por essa inflação do judicial como única instância que pode tornar o indivíduo moribundo um ser especial, seja como vítima ou como criminoso. Talvez seja por isso que ficamos tão excitados com decisões judiciais e discutamos com tanta paixão legalidades do aborto, ou curas gays, pois isso nos permite colocar em primeiro plano, via decisões judiciais, questões que de outra forma nunca surgiriam no debate público. Isso é errado? Não importa tanto saber quem está certo ou errado, mas em como somos dependentes de uma chancela burocrática para discutir coisas que não conseguem ser espontaneamente debatidas. Por que precisamos de juízes para decidir o que deve ser a pauta das discussões, para nos mobilizar e para reivindicar mudanças?

Gostaria de imaginar um mundo que não precisasse ser uma grande repartição pública, onde as coisas não dependessem de uma gerência para serem especiais, nem transformar nossas memórias em autos de um processo divino para dar um sentido à vida.

A descrição do alinhamento celeste é muito bonito, diga-se de passagem. Se você não viu pode achar facilmente em um video do youtube, só colocar "fim do mundo e 23 de setembro". Alguns esotéricos estavam preocupados em apaziguar seus seguidores temerosos de que o mundo fosse mesmo nos cuspir de sua superfície. Creio que pessoas que insistem em cultivar boas vibrações não perceberam que o mundo não se interessa muito com a nossa felicidade, nem os céus precisam anunciar algo para nós, ou cuidar das vicissitudes de nossa breve existência. Não defendo aqui um pessimismo radical, apenas acho importante salientar que precisamos nos libertar dessa centralização antropocêntrica obsessiva... soltar-se de tudo isso e olhar para as coisas com mais reverência e silêncio.

"A maior diferença entre nós e os pagãos talvez resida na relação diferente que temos com o cosmo. Para nós, tudo é pessoal. Para nós, paisagem e céu são o delicioso fundo da nossa vida pessoal, e mais nada. Para nós, mesmo o universo do cientista pouco mais é do que uma extensão da nossa personalidade. Para o pagão, a paisagem e o fundo pessoal não tinham importância nenhuma. O cosmo, porém, era algo de muito real. O homem vivia com o cosmo e sabia-o maior do que ele.

Não vá pensar-se que vemos o sol como as antigas civilizações o viam. Tudo quanto vemos é um pequeno astro científico reduzido a uma bola de gás incandescente. Nos séculos anteriores a Ezequiel e a João, o sol ainda era uma realidade magnífica da qual os homens extraíam força e esplendor, à qual retribuíam com homenagens, glória e agradecimentos."

Por que temos tanto medo de morrer? Tanto medo de mudar? Não seria isso tudo, na verdade, um medo horrendo de ser o que somos até à medula - irrelevantes?

Tinha um professor que dizia que gostaria de ser como um alce que aparece apenas para beber água de um rio, logo desaparecendo sem deixar rastros. Perguntei: e o seu legado? Não gostaria de deixar algo relevante para as outras gerações? Ele ria e dizia: que legado? A natureza não é assim, por que esse papo de legado? 

Toda essa burocratização da vida não nos permite ver as coisas para além de suas funções no processo civilizatório. Me pergunto o quanto é importante para mim a brisa que estufa as cortinas, acariciando meu rosto? Não estivemos nós sempre ao lado de companheiros invisíveis, de mãos dadas com eles todos os dias de nossas vidas? Toda essa afasia da Terra me estarrece, pois percebo coisas preciosas serem sistematicamente descartadas, os dias estão cheios de pequenas despedidas as quais eu não consigo olhar de frente. Tudo para continuar sendo besta e relevante. Não estaria justamente isso nos empurrando para uma solidão infinita?     

Conseguiremos nós, um dia, perceber a alegria da contemplação... das vastidões de nossa irrelevância e aceitar a companhia do cosmos?

links:
https://www.livros-digitais.com/david-herbert-lawrence/apocalipse/39 versão free do livro Apocalipse de D H Lawrence. 
  

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