O peso de nosso olhar

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"Se a pena tivesse caído, se tivesse feito descer a balança, a casa inteira teria mergulhado nas profundezas para se assentar nas areias do olvido(esquecimento)." 

Essa citação foi retirada da obra "o tempo passa" de Virginia Woolf. Nesta obra curta, umas cinquenta páginas, Virginia narra a trajetória de deterioração de uma casa abandonada por seus donos após a primeira guerra mundial, acho que é isso. Usei um outro trecho em meu post passado, e as palavras buscam descrever a situação de uma casa invadida pelas forças da natureza. Segundo o filósofo Michel Serres, a obra trata do combate entre as forças da entropia e da ordem, ou do velho conflito filosófico entre idealismo e realismo.

Como assim? Bom, as vezes é realmente maneiro ler comentaristas de literatura, afinal esses caras apontam coisas que acendem nossa leitura para aspectos inusitados. Para Michel Serres, "o tempo passa" mostra como a presença humana, personificada na figura da Sra. McNab(uma velha arrumadeira que organiza a casa abandonada), representa a força do olhar humano sobre as coisas, o cuidado que recupera a ordem e restabelece a integridade dos objetos abandonados à degradação, ao tempo(nos seus dois sentidos - intempéries das estações e o rolar da existência).

Para Berkeley, ser é ser percebido(estaria ele prevendo o advento do Instagram?). Isso contradiz a ideia de que o mundo existe a nossa revelia, negando o pensamento realista que diz que as coisas existiram e existirão mesmo quando todos os seres humanos tiverem desaparecido da face da Terra. Acho que somos muito mais realistas atualmente, tendo em vista nossa alegria científica em postular big bangs e leis sobre quase tudo. Para Virginia Woof, as coisas estão abandonadas à entropia, ao caos, sendo o olhar humano responsável por colher as flores, tirar a poeira, organizar a louça... a presença do humano é o elemento ordenador que transforma a matéria abandonada em um lugar familiar novamente.

Na mitologia egípcia, Maat simbolizava a ordem e sua irmã Isfet o caos. Quando alguém morria, seu coração era colocado em um prato da balança e no outro, a pena de Maat. Esta cena aparece o American Gods em uma daquelas historinhas introdutórias, que diga-se de passagem, é bem mais legal que a historia do Shadow Moon, mas ok..rs Se o coração afundasse a balança, o morto era entregue para Ammit para ser devorado, se a pena e o coração se equilibrassem, o morto iria para o céu e gozaria da presença de seus ancestrais e dos deuses.

De acordo com a citação, se a pena tivesse caído a casa teria sido engolida pelo caos. Isso me intrigou pois essa cena não estava na mitologia. Acho que ela quis dizer que o coração não pode ser nem mais pesado, nem mais leve que a pena sagrada. O temor de Virginia se direciona para o esvaziamento do coração das coisas, para a ausência de um olhar afetuoso que anime o espaço da materialidade até chegarmos ao ponto em que uma pena nos suspenderia do mundo. Serres diz que pensar a ecologia implica perguntar como anda nosso olhar para as coisas. Será que permitiríamos tamanha destruição se nos importássemos com a beleza do mundo?

"Como os capitães de petroleiros que esvaziam os tanques em alto mar percebem o oceano? Que percebem da paisagem rural os que poluem com cartazes as entradas das cidades? Como consideram o mundo os que o tornam imundo? Se o considerassem tão divinamente belo quanto, evidentemente, eu o percebo, respeitariam o espaço e os seres vivos que eles assassinam. Percebem eles, talvez, da mesma maneira os amigos, a companheira, o filho; tão feios, tão ausentes, tão indiferentes que matariam os que os rodeiam assim como o ambiente?"

Para Serres, esta obra de Virginia Woolf o convenceu a reabilitar o idealismo. Talvez, porque as coisas estejam abandonadas e esvaziadas por um realismo que as tomou como certas( me lembrando do termo take for granted). O temor egípcio se inverteu de modo que agora estamos ameaçados pela ausência do olhar sobre nós e as coisas. Desprezamos os objetos familiares, os amuletos, as coisas. A tão temida depressão me parece ser esse lugar em que nos perdemos do olhar da vida, em que nos sentimos pairando solitários no caos do mundo.

Nada mais solitário existiu nesse mundo do que o empresário de si mesmo, tipo uma criança brincando sozinha, só que pior.

Para a psicanalise, olhar para um bebê como um ser amado é bem diferente de olhá-lo como um "pedaço de carne". Creio que isso se aplique a tudo, pois me parece que o olhar atencioso está em falta no mercado. Apenas a arte parece caminhar na direção voltar o olhar sobre as coisas, com carinho, sendo capaz de vivificar até os terrenos mais baldios... Manoel de Barros que o diga.

Observe o silêncio das coisas, a timidez de uma cadeira com seus pés curvados para dentro ou a surpresa de um passarinho surpreendido tomando banho numa poça d'água... tudo ganha vida sob nosso olhar. 



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