Dar o que não se tem
A rosa não possui olhos, nem pele, nem olfato...não se decepciona com um botão que não floresceu. |
Alguns dias atrás, eu estava conversando com um amigo na
filosofia a respeito das limitações de se pensar o amor com as palavras e
conceitos que temos disponíveis atualmente e ele me disse uma frase de Lacan a
respeito do amor que eu achei bem interessante: Amar é dar o que não se tem. Não
sei se a frase é assim mesmo, não tenho a fonte bibliográfica e muito menos o
contexto em que ela foi dita, por isso vou apenas produzir uma reflexão própria
a respeito desta frase, juntando com aspectos que já algum tempo tem despertado
meu interesse.
Uma idéia que tem me incomodado é que na Bíblia Deus
geralmente se manifesta ao homem por uma demanda impossível, em outras
palavras, Deus pede justamente o que não podemos dar. Deus pede a Moisés que
lidere o povo Hebreu, sendo ele gago e tímido; pede água à viúva de Sarepta,
quando já não havia água em lugar nenhum; pede a Abraão que sacrifique seu
único filho, filho que ele teve sendo velho e sua mulher estéril e, por fim,
Jesus pede água momentos antes de morrer na cruz. Em várias passagens Deus se
revela por uma demanda improvável, pois seria mais coerente se ele se revelasse
abrindo o mar vermelho, ou mandando o maná do céu, afinal, Deus não precisa de
nada - como Ele mesmo diz: Eu Sou, então, por que ele pede ao homem?
Isso soa como a pergunta socrática que nunca possui uma resposta
adequada. Diante das tentativas mais elaboradas de seus opositores, Sócrates
faz com que todas as respostas se desmanchem diante de seus próprios
contra-exemplos. Perguntar pelo que não tem resposta mostrava a ignorância de
todos que com ele dialogaram e por isso foi condenado a beber cicuta. Segundo a
Apologia, Sócrates se intitulava a mosca que tenta despertar o
cavalo sonolento (Atenas), pois seus moradores estavam se degenerando
moralmente diante da crescente dissolução dos costumes da cidade e do
relativismo suscitado pelos Sofistas que diziam que todo discurso pode ser
dobrado em favor dos interesses de quem o pronuncia, de forma que nada é mais
absoltamente errado ou certo, afinal como dizia Protágoras “o homem é a medida
de todas as coisas” e, assim sendo, valores antes universais são erodidos pela
perspectiva particular da realidade humana.
O que não tem resposta e o que não possuímos seria o que nos
faz saltar de uma posição particular para algo que nos transpassa, evidenciando
nossa ambigüidade enquanto indivíduos que convivem em sociedade e que partilham
valores e costumes, ao mesmo tempo em que possuímos certa autonomia (moral-intelectual)
diante realidade que nos cerca.
O amor brota dessa ambigüidade particular-universal e, a meu
ver, realiza a passagem deste momento de ingenuidade autônoma para um
enfrentamento com a alteridade, sendo este momento marcado pela provocação(pergunta-pedido) que
coloca o indivíduo em uma situação incômoda, pois este é obrigado a reconhecer suas limitações. Esta provocação se faz necessária porque normalmente ignoramos
o que nos falta e não estamos dispostos a reconhecer tais limitações, sendo que
geralmente retribuímos a provocação com respostas amargas, como o vinagre que o
centurião oferece a Jesus, ou a condenação a morte no caso de Sócrates. Lutamos para manter a ilusão da autonomia plena.
Amar seria a concretização de uma ambigüidade inimaginável ao
indivíduo comum, do qual ele foge com unhas e dentes. Dar o que não se tem
seria o privilégio e talvez a maldição de quem se reconhece impermanente e se dispõe
a mostrar aos outros que compartilhar nossas limitações e defeitos é o começo de
uma forma sublime de relacionamento- o Amor.
Nossa.
ResponderExcluirMuito bom, hein!?
Ótima definição de amor.
Gostei do comparativo divino... acho que Eros é bem parecido com Geová nesse sentido.
há! meu.. vc leu muito rápido! eu estava editando ainda..rs esse post eu comecei sem querer. Eu tinha outro tema, mas ele se impôs no meio do texto, dai eu tive que recomeçar. mas gostei do resultado final, ainda que o enigma permaneça..rs ando muito sem tempo! uffff
ResponderExcluirvalew!!
Mas minha opinião permanece...
ResponderExcluirSó vou acrescentar um elogio à foto e à legenda que vc colocou.
Esse foi a conversa que mais gostei até hoje. Tanto é que li e reli umas 4 vezes. =)
ResponderExcluirVou tentar... embora com algum enfrentamento intelectual para entender o que vc quis passar, o amor real e possível é o tema que permeia o seu erudito texto de filósofo... ah sim o amor, desse sim posso falar, com proximidade ou com certa distância, porque ainda estou a aprender...
ResponderExcluirTb me disseram certa vez que amar é dar o que não se tem, e acrescentaram... quem ama de verdade também ama de forma desinteressada, sem esperar algo em troca, enganam-se os que amam esperando receber... mais amor...
E esse dinamismo sem muito sentido, de dar o que não se tem, de modo desinteressado, parece ser o que falta para que o verdadeiro amor realmente aconteça... me refiro ao amor no seu sentido pleno, um amor que transcende relações afetivas, mas que tb é possível entre homem e mulher...
Essa mesma pessoa que sempre exercita minha mente e me faz pensar fora da caixa regularmente... ainda acrescentou...
existe um ponto a se chegar e aqui a humildade é uma forte aliada... quando assumir que és "nada", sem o ego que te engana e que te ilude o tempo todo.. poderá descobrir-se na sua pequenez... sendo "nada" serás "tudo" e, aí neste ponto, terás a completa noção do amor que podes dar...
E o circuito se fecha! A hipótese inicial de dar o que não se tem cede espaço ao fluxo contínuo de amor que retorna àquele que "se encontrou" na humildade e na supressão do ego...
:D
Tentei! bjinho
Esse post esta superando minhas expectativas..rs agora estou percebendo o que eh dar o q naum se tem.
ResponderExcluirNão é minha pretensão intimidá-los com um discurso filosofico.. eh apenas provocá-los. Espero que minhas inquietações sejam transformadas em boas ideias.. em caminhos novos e seus comentários são uma satisfação!