O sem razão que nos une

Ontem eu fui a um colóquio, na Sociedade Brasileira de Psicanálise, sobre Relações Familiares na Atualidade. A primeira conferência foi com os psicanalistas Rodolfo Moguillanski e Silvia Liliana Nussbaum, da Asociación Psicanalítica de Buenos Aires e, como foi a mais interessante, vou falar apenas dela.

A primeira fala, do Rodolfo, tratou do campo específico de interesse da psicanálise vincular (ou seja, dos vínculos entre as pessoas, mais do que de cada indivíduo envolvido neles): o sem razão que une, o amor. Vou dividir com vocês o qu eu ouvi, tá? Aí pensamos a partir disso.

Supor o encontro amoroso como possível é uma construção muito recente. Até o século XX, nem o casal e nem a família encontravam o seu fundamento no amor. Isso foi imaginado pelo Romantismo, no XIX. E a possibilidade do encontro amoroso, no XX, coincide com a emancipação da mulher. Sem casamentos arranjados e com as mulheres livres para poderem escolher, o insondável do amor, então, passou a dar as cartas e ser possível.

Com essa invenção, a família moderna se sustenta por si só, sem a necessidade da igreja ou de contratos civis. Tanto que muitas uniões são baseadas na ilusão de amor recíproco e não no casamento civil. Essa nova trama de relacionamentos traz também uma nova racionalidade. Uma racionalidade em que jovens acreditam que vão encontrar a felicidade no amor.

O anseio de encontrar a felicidade também é algo que data do século XX. Na idade Média, por exemplo, almejava-se a salvação. Encontrar a felicidade no amor é algo ainda mais recente, que permeia todos os meios culturais. Temos um sem fim de filmes e músicas, peças que atualizam a promessa de que um dia encontraremos o amor, a pessoa para quem poderemos falar "se tenho amor com você, não preciso de mais nada".

Na convicção moderna, a busca da felicidade organiza a vida, como uma religião. A gente acredita no Amor e é necessário que Ele exista. Se há desencontro, sofrimento, acredita-se que o casal fracassou (muitos procuram a clínica por isso, por conta do mal-estar de ter mal-estar, de ter fracassado como casal, como organização). O sofrimento é visto como deterioração da construção conjunta.

Cada casal constrói sua própria cultura, um bem comum, que é o que constitui o vínculo indissolúvel. O bem-estar advém da sensação de ter um bem comum. É uma experiência de construção que tem continuidade para além dos momentos em que estão juntos e o que interessa é a crença de que estão unidos. Isso se expressa das seguintes formas:

- Na narrativa do bem-estar, que assegura que haverá um encontro. há histórias, há constante reconstrução da origem. cada casal tem um arquivo das histórias que levaram os indivíduos a se encontrarem e construirem isso que têm em comum. E há projetos futuros.

Isso é tão forte que aqueles que não têm/tiveram, incriminam-se por isso. A queixa, na clínica, às vezes gira em torno da falta, do que deveria ser.

Todo vínculo inter-subjetivo, amoroso, é baseado no encontro ilusório com o idêntico ou com o complementar. E, nesse encontro, as diferenças são eliminadas. O que é heterogêneo é homogeneizado e chegamos ao Um que o nosso conjunto realiza. Constituem-se lugares inconscientes que são fontes de sentido, que produzem uma nova subjetividade. Não é apenas uma parceria, mas uma instituição, da qual os indivíduos são sujeitos.

O Bem-estar fusional é a ilusão de ter a mesma ilusão. É a crença compartilhada a partir de cumplicidades sincronizadas e expectativas de reciprocidades mútuas. Esse é o patrimônio do casal. A crença de que com a mesma palavra falamos a mesma coisa. É a crença numa origem e num projeto compartilhado.

Nos estados do enamoramento, onde ocorre a vida do casal, temos essa fantasia, que parece suficiente para garantir o "um para o outro" (somos o mesmo, representamos o mesmo). Dentro desse bem-estar de fusão, a vida cotidiana mostra que é difícil manter a ilusão. Toda instituição cria uma história daquilo em que se acredita que os indivíduos viveram juntos. Todo casal acredita numa origem, que é sempre homenageada. E os projetos são uma ilusão que os consolida como casal.

- Na segurança. A segurança é um bem-estar criado dentro da previsibilidade, na crença de que algo continua sendo alguma coisa que já foi. É o que possibilita que o marido não precise, todas as manhãs, perguntar para a esposa se ela ainda o ama e se continuam sendo um casal, por exemplo.

- Além do bem-estar da ilusão e da segurança, há o de confiança. Na clínica vincular, que é motivada por um desencontro que leva a culpas e censura, observamos que, nesses casos, há a exigência de que seja retomado o bem-estar que uma vez foi. Na confiança de manter o vínculo, acredita-se que o bem-estar é possível, ainda que, no momento, haja desencontro. Confiança temos de que o outro vai querer se entender comigo, ainda que não haja segurança.

Sobre o Mal-estar e os Desencontros:

o que se une na ilusão de amor é uma série de contradições e equívocos. A união está sempre ameaçada com a dissipação. A sensação de ruptura da ilusão de igualdade ou complementaridade causa mal-estar. No desencontro, perdemos a confiança/esperança no bem comum e isso causa sofrimento.

***

A apresentação da Silvia teve como foco a escuta do vínculo.

O que ouvimos numa senssão vincular? O que enquadra o psicanalista? Converte-se em dados, na psicanálise, algo que a outros campos de saber passaria despercebido. Cada enquadramento (antropológico, filosófico etc.) ilumina um determinado vértice.

Na escuta psicanalítica, é preciso criar um solo de receptividade capaz de compreender as determinações inconscientes do vínculo, com seu próprio fundamento narcisista.Ou seja, mais do que nos concentrarmos no inconsciente de cada indivíduo, é preciso focar no vínculo, no que produz em cada indivíduo a ideia de pertencer a um casal, a uma família.

Analisamos a produção fantasmática compartilhada (a ilusão de ter a mesma ilusão. mas qual?). Nas consultas vinculares, aparece o sistema de lealdades entre os indivíduos, as projeções/introjeções mútuas de papéis inconscientes. Transparece toda a partilha entre bem e mal, belo e feio, normal e anormal, do que é mundo e do que é imundo, que qualifica comportamentos, elege bodes expiatórios etc.  E vai ficando clara a qualidade do cimento nascisista do vínculo - que pode ser mais ou menos capaz de conter diversidades, manter a diversidade dos indivíduos, com suas singulariades.

***

Pois bem. Acho muito interessante pensarmos no vínculo como a ilusão de ter a mesma ilusão, de acreditar que, com a mesma palavra, falamos o mesmo. Não falamos. É por isso que, para Lacan, não existe relação sexual. O outro é suporte da minha fantasia. Quando há frustração disso, ou seja, quando o outro se mexe e, portanto, a vivência da minha fantasia fica ameaçada, sofro. Começa a batalha de readequação do outro à minha fantasia. Não quero o outro como outro, quero-o dentro do meu script.

Observar o vínculo como uma dinâmica própria,  com determinações próprias (para onde nos leva cada vínculo!?!?!), como uma terceira coisa entre dois indivíduos, que também têm, cada um, a sua dinâmica, é complexificar as relações. Assim, podemos pensar como essa dinâmica que há entre nós afeta a minha singularidade, a faz florescer ou minguar ou ambos, ou outra coisa e como você, enquanto indivíduo, me afeta. São muitos fatores envolvidos numa equação que ultrapassa a capacidade da razão de explicar e me faz pensar que os verdadeiros encontros amorosos (incluo aqui as amizades) são mesmo um milagre. As afinidades, os atritos que vão polindo nossas lentes para o mundo são insondáveis na maneira como se dão, no quanto duram, por que e para quê são.

A abordagem psicanalítica oferece muitos elementos para pensarmos, mas não dá conta de tudo o que há nas relações.... enfim... escrevi bastante já.

um beijo,

Comentários

  1. Lendo o Deleuze e pensando suas palavras, acredito que um relacionamento amoroso realmente é um mistério que envolve tanto nossa individualidade, quanto o objeto de nosso amor em uma espécie de dança que não é mais dialética, que não se esgota em nossas estruturas..um serpentear que ameaça nossa apreensão das coisas, que nos coloca em movimento junto com nossa experiência, não mais a partir de nosso ser. O amor é um passo para essa nova maneira de viver, não mais ditada a partir de nosso ponto de vista.

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  2. Depois, a gente tinha que fazer um post pensando o que é que a gente chama de amor. Não para definir, claro, mas, tomando essa ideia de que o vínculo é a crença de que falamos o mesmo quando usamos a mesma palavra, poderíamos explorar os significados desse significante que a gente (você bem mais do que eu) tanto trabalha nesse blog. Porque eu acho que amor é um balaio em que cabem eventos muito sofisticados, mas também gosmas bem doentias... né!? como a gente tem vocação pra monge, prefiro que caminhemos na direção da sofisticação. Voltamos à pergunta dos primórdios: o que é o amor?

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  3. talvez mais que isso: o amor (erótico ou não) é para todos?

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  4. O amor é uma carta que todos carregamos e que deixamos à nossos descendentes... mas nem todos descobrem seu conteúdo. Vou tentar comentar essa idéia do Rilke no próximo post.

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  5. Acho mesmo que algo como o amor exista, assim como acredito que exista um Deus.
    Em ambos os casos as tentativas de compreensão e descrição a que estamos acostumados me parecem frustradas.
    Nos confundimos e chamamos de amor aquela necessidade de completude, a projeção no outro
    daquilo que nos falta e que acreditamos que nos faria feliz.
    Apesar de o Romantismo e o Feminismo terem promovido este modelo familiar baseado no amor em
    vez de interesses outros, penso que a necessidade de encontrar a pessoa que nos completa seja inerente a
    nossa condição de seres interdependentes.
    Se pensarmos na Grécia Antiga, veremos que os casamentos existiam mas não possuíam, necessariamente, vínculos com o amor.
    Este estava reservado para outras esferas. O amor costumava se revelar entre dois homens e não tinha a conotação de homosexualidade como hoje, era algo
    perfeitamente natural e aceitável perante a sociedade. ou mesmo o amor como representado nos mitos, onde as pessoas (deuses ou mortais)
    se apaixonavam.
    Na Idade Média surgiu o Amor Cortês, que era ou platônico ou adúltero, mas já se baseava em uma idealização da pessoa amada.
    Mas a busca em si não é o amor.
    O amor acontece quando a busca cessa e perde sentido.
    Quando percebemos que o ideal aparece e permanece na fase da Paixão avassaladora dos primeiros encontros, dando lugar a algo bem mais maduro e sólido,
    e bem menos exigente, na verdade, bem mais complacente.
    O amor se dá quando tomamos conciência de que o outro é o outro, e não uma parte perdida e reencontrada de nós.

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    1. o que é o amor? o amor muda, esconde e se manifesta sob várias formas. Uma coisa que me deixa curioso é o que seria amar hj. Como a Pati disse, sob a ilusão do discurso comum se esconde coisas estranhas, fascinantes... nesse caso uma resposta é um pouco indelicada, poderíamos fazer algo mais interessante hein!? fica a provocação

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