O véu de Eros
Quem é o "outro" para quem aperta o gatilho? |
Assistindo
o café filosófico da semana passada, cujo tema era o ódio e a xenofobia na
Europa contemporânea, o palestrante Dante Claramonte Gallian usou uma figura
interessante para ilustrar a ideia do ódio retirada de um livro do sec. IX chamado
O Peregrino Interior. O personagem principal guiado pela Sabedoria avança pelos
meandros da alma humana e se depara com um personagem, o cupido de olhos
vendados. Diante desta figura, o peregrino pergunta a Sabedoria: não é este o
amor? Por que está vendado? A Sabedoria diz: cuidado... este é, na verdade, o
ódio.
Esta
figura é utilizada para afirmar que o ódio não se constitui como antítese do
amor e não deve ser considerada como uma paixão puramente negativa, mas como o
“amor vendado” pela ignorância. Assim, odeia-se o estrangeiro porque
desconhecemos sua história, o que pode ser trabalhado pelo desvelamento de suas
origens, o argumento do palestrante aponta para o conhecimento do outro
(estrangeiro) pelo diálogo como caminho para a transformação do ódio em amor.
Afirma ele que dificilmente odiamos alguém quando conhecemos sua história.
A
partir deste exemplo, lembro de minhas conversas com a Pati, e de como ela está
intrigada com o fato de que a maioria das pessoas não conseguem pensar a
própria vida. Eu acredito que tal ausência de reflexão se encontra no medo, na
impressão de que questionar nossas certezas nos levará ao abismo. A incerteza é
algo incômodo, quase insuportável, como conviver com ela? Assim, não é de se
espantar que o ódio seja a paixão mais comum de se encontrar, mais sedutora,
pois conjuga medo e paixão, duas características brutas do ser humano.
Preferimos odiar porque somos inseguros e acreditamos que conhecer implica em
desamor, não é a toa que a filosofia sempre esteve ligada à ideia de uma
atitude impassível, contemplativa da realidade.
Para
mim, filosofar é responder ao desafio de olhar o outro como ele é, de
conhecê-lo pela sua história e pelo seu percurso. Para isso, suportamos o medo
da incerteza diariamente e questionamos nossos argumentos, pressupostos,
dogmas, e até mesmo nossa fé, por amor. Não afirmo que é isso o que acontece
nos departamentos de filosofia, mas é minha visão pessoal do que é a filosofia.
Amar significa se esforçar por compreender o outro, um outro que não se dá em
uma primeira olhadela, superficial, sedutora, mas que se esconde sob a poeira
das certezas, sob as mil folhas de signos enferrujados, é encontrar o outro em
uma proposição Espinosana do século XVII. Para isso, rastejamos por eras
remotas, aprendemos outras línguas, nos tornamos estranhos a nós mesmos e
aprendemos sem aprender toda sorte de ismos, só para termos um rastro para
seguir de encontro ao Outro, ou melhor, Você.
Ninguém
melhor que o filósofo para compreender que nosso conhecimento é precário,
muitas vezes falho, e que nosso amor nunca se encerrará nos limites de nosso
conhecimento. Mas o que eu percebo é que o ódio prevalece mais pela nossa
covardia moral do que pelas limitações de nosso intelecto, porque refugamos
diante de nossos medos interiores a tomar a decisão pelo conhecimento de nós
mesmos e isso acaba por nos impedir de conhecer os outros aspectos de nossa
existência, enfim, isso nos impede de amar.
Não
acho estranho que Eros tenha sido nomeado pelo oráculo como um monstro a
espreita no alto da colina, não é de se estranhar, por isso, que o cortejo que
levou Psique ao seu encontro tenha sido um cortejo triste, quase fúnebre. Tal
tristeza sempre nos acompanha quando nos direcionamos ao desconhecido e por
isso também acredito que o esforço de conhecer seja o esforço do amor, pois a
despeito de todos os sinais que recebemos daqueles que nos acompanham nessa
marcha rumo ao desconhecido, confiamos que este encontro poderá trazer algo de
bom, não paramos diante da incerteza.
Eros
diz que “no amor não há lugar para desconfiança”, por isso acho que conhecer
não significa “desconfiar” das coisas, mas avançar sobre incertezas, e foi isso
que Psique fez do inicio ao fim de sua mitologia.
Muito bom! Eu acho que isso tudo que você disse sobre conhecer o outro como ele é aplica-se a conhecer a nós mesmos como nós somos. Vou trabalhar isso melhor num post (sobre pensar como um ato de generosidade, de amor... que a gente falou), mas eu acho que conhecer o outro e a nós mesmos é muito difícil. Porque, para isso, é preciso deixar cair toda a nossa idealização sobre o mundo (como ele deveria ser e não é), sobre o outro (como ele deveria ser e não é) e até sobre nós mesmos... a gente se idealiza muito, a gente acha que é uma coisa, mas, na verdade, é outra, ou não é tudo isso ou é muito mais, enfim, é algo que não condiz inteiramente e perfeitamente com o nosso ideal de nós mesmos. No fim das contas, funcionamos segundo a lógica antropocêntrica. Tudo é referido ao nosso modo de ver e viver. O outro, que é diferente, precisa ser reformado para que encaixe no meu molde e, então, eu posso ficar tranquilo porque a Criação (minha criação) segue no smeus conformes. Abrir mão do ideal é abrir mão da zona de conforto, é assumir a nossa finitude, incompletudo, imperfeição. E é aprender também, é descobrir infinitos universos novos. Mas abrir mão do ideal é a coisa mais foda do mudo. Porque, se você está muito apegado a ele, abrir mão dele é enfrentar o fim do mundo (do mundo que eu concebi, que eu achava que era o único e real e que eu tentava impor a tudo e a todos). Conhecer é avançar sobre incertezas acera de tudo, até de nós próprios. Por isso, amar é um negócio muito maravilhoso e horroroso ao mesmo tempo (daí a aparente ambivalêcia que vc falou - na real, não acho que é ambivalência, mas um paradoxo, porque a vida se dá assim mesmo... tudo misturado. O Nietzsche nos ensinou que não há oposição nem sequer entre vida e morte, né!?), porque, na medida em que avanço sobre o terreno desconhecido do outro, avanço sobre o meu desconhecido também. Como você colocou : "rastejamos por eras remotas, aprendemos outras línguas, nos tornamos estranhos a nós mesmos e aprendemos sem aprender toda sorte de ismos, só para termos um rastro para seguir de encontro ao Outro, ou melhor, Você."
ResponderExcluirseguimos conversando.
beijos
Nossa, comi muitas letras nesse comentário. vcs vão entender, né!? sorry.
ResponderExcluirAh, outra coisa... discordo de você quando você fala o seguinte: "(...)o que eu percebo é que o ódio prevalece mais pela nossa covardia moral do que pelas limitações de nosso intelecto, porque refugamos diante de nossos medos interiores a tomar a decisão pelo conhecimento de nós mesmos e isso acaba por nos impedir de conhecer os outros aspectos de nossa existência, enfim, isso nos impede de amar." Isso, pra mim, é dar muito poder à razão, à vontade consciente. Não acho que é uma decisão moral avançar ou não sobre o nossos medos. Portanto, não dá pra chamar de covardia, no meu ponto de vista. Acho que se conhecer e amar são possibilidades. Possibilidades que se abrem ou não se abrem para nós. Ou melhor, se impõe. Ninguém escolhe amar ou pensar. A filosofia nasce de uma violência - uma violência, um espanto com o mundo, com as artes, com as ciências. E essa violência coloca o imperativo de ser elaborada (pensada). Aí começa a filosofia. pensamos porque não tem outro jeito... porque, do contrário, sofremos como cachorros, sem conseguir dar sentido a nada. Somos levados a pensar e a nos conhecermos porque fomos violentados por algo, algo nos rasgou (como uma concha, que só faz uma pérola porque um grão de areia a feriu. A pérola é o produto da elaboração de uma ferida). E esse rasgo pode ter sido o amor - o sem razão que se nos impõe absolutamente misterioso, maravilhoso e horroroso.
ResponderExcluireu tenho sérias dificuldades para enxergar dessa forma, sofro como um cachorro...rs mas sinto um receio grande de não responsabilizar as pessoas pelos seus atos, inclusive os atos de amor. Porque enquanto possibilidades eu acho que tudo tende a se resguardar na mera passividade, o que para mim é desesperador. O sem razão nos rasga a todos, mas eu encontro pouco amor pelo caminho...prefiro acreditar que é assim porque em um determinado ponto podemos escolher ser diferentes, pensar ao invés de reagir.
Excluirvc bem que podia escrever mesmo a respeito, inclusive discordando, isso deixa a coisa mais interessante..rs
impõeM (sigo comendo letras, vejam...)
ResponderExcluirum tanto atrasado, mas...
ResponderExcluirGostei muito do texto, mas queria comentar a questão do ódio como covardia moral ou possibilidade. Fico no espaço entre os dois. Quando li o post pensei: acho que não odiamos por covardia, mas por preguiça. Quando li o comentário da Pati pensei ter me decidido... odiamos por inércia, considerando o ódio como fruto da ignorância, já que ficar acomodado no nosso canto é bem mais fácil que "avançar sobre incertezas".
Só q também entendo qaundo o japa chama isso de covardia, pois poderíamos ter a coragem de buscar o conhecimento sem que algo nos obrigasse a isso.
Nem sei se me fiz claro... como é ruim escrever durante o expediente!!
Acho que fiquei muito sensibilizado pelo texto "o existencialismo é um humanismo" do Sartre.. acabei chutando o balde. acredito demais no indivíduo-racional, espero demais de mim... isso acaba sendo muito frustrante..rs compreensão, isso é algo que sinto falta... assim como as paixões estão esfriando, acho q pior que o ódio e a ignorância é a apatia. à isso eu ofereço minha caneca cheia de provocações..rsrs um brinde!
ResponderExcluir