Profetas e Poetas

A luta de Jacó com o Anjo - Delacroix
Casamento
Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
 ele fala coisas como "este foi difícil"
"prateou no ar dando rabanadas"
e faz o gesto com a mão.

O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Esse poema me atingiu como uma frechada do cupido. 

Meus olhos estavam acostumados a ler o deserto quando alcançou este balsamo "O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo". Até o ar mudou, ficou cheio de um aroma suave de vida. 

Adélia Prado é uma mulher que está tão cheia de vida que quando fala ela não produz palavras - solta poesia pelo ar.

Como faz falta gente assim no mundo! Tanto falta que até Deus lamenta e diz: não há um justo, nem um sequer. Eu acho que hoje faltam mais poetas que justos.

Isso me faz lembrar de uma história bíblica, uma vez Deus falou a Abrão para que ele tirasse seu parente Ló de Sodoma, porque iria destruí-la. Abrão intercede e diz a Deus para não destruí-la se houvesse lá cinquenta justos, Deus acata. Abrão pensa bem, e diz para Deus.. quarenta? Deus fala..."tudo bem". Daí vai pra trinta, vinte, dez... e Deus dizendo ok, ok... no final, Abrão corre para Sodoma para salvar seu sobrinho. O homem de Deus vive rogando pelos seus e em seu coração sobeja uma misericórdia pródiga - quer salvar o homem. O poeta quer salvar o humano.

Outra passagem diz assim:"homens dos quais o mundo não era digno, errantes pelos desertos, e montes e pelas covas e cavernas da terra." Hb 11 Acho que essa passagem poderia muito bem se aplicar aos profetas e aos poetas..rs

"A natureza é uma força que inunda como os desertos"

"Sou mais a palavra ao ponto do entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro,
Enverga-las pro chão, corrompê-las
Até que padeçam de mim e me sujem de branco." Manoel de Barros

O poeta percebeu que a palavra é algo mais, algo sobre o qual transitam desígnios superiores, fascinante como a ponte que Jacó contemplou em suas visões. Quando usamos as palavras poeticamente elas ganham um espírito diferente. Comentando a importância da metáfora no fazer poético, Adélia Prado disse que uma coisa é dizer para sua namorada: nossa como seus olhos são bonitos! Outra é dizer: seus olhos brilham como duas estrelas no céu! Isso desperta sentimentos profundos, inesperados, que amolecem o significado das palavras como a água amolece a casca da semente, permitindo que seu conteúdo se revele - germine.

Escrever é algo que exige um embate, pois a palavra se realiza como uma concessão divina. Veja este personagem: Jacó. Seu nome significa "enganador", isso porque no momento de seu nascimento ele veio agarrado ao calcanhar de seu irmão. Um dia, Jacó precisou reencontrar seu irmão depois de muitos anos longe da casa de seu pai. Sem saber como seu irmão Esaú iria reagir à sua chegada, foi planejando um reencontro amigável, enviando presentes e agrados. Antes do reencontro, um anjo de Deus se coloca em seu caminho e inicia uma luta com Jacó.

"E Jacó ficou sozinho, então veio um homem que se dispôs a lutar com ele até o amanhecer."Gn32
Ao final da luta, Jacó pediu que fosse abençoado, senão não largaria o anjo.
O anjo muda-lhe o nome de Jacó para Israel, que quer dizer "o que luta com Deus".

Quando o poeta muda o nome das coisas não nos damos conta das lutas que precedem a feitura dos versos. Adélia Prado disse que se sentia como o cavalo do santo, e que o ofício poético era algo descolado da vida do poeta. Segundo ela, Carlos Drummond não parecia um poeta, parecia mais com o dono da padaria, um homem bem vestido, circunspecto, não transparecia a grandeza de seus poemas. A vida do poeta, segundo ela, se assemelhava a um trabalho de parto, sendo a obra algo muito superior ao substrato humano que o concebeu. 

Dessa relação(luta) entre o poeta, homens e deuses, surge o poema.

Encerro com uma poesia de Adélia Prado que ela costuma ler em suas apresentações e que não deixa ninguém de pé...

Bendito

Louvado seja Deus, meu senhor
Por que meu coração está cortado a lâmina
Mas sorrio no espelho ao que
À revelia de tudo se promete;
Por que sou desgraçado
como um homem tangido para a forca,
Mas me lembro de uma noite na roça
O luar nos legumes e um grilo
Minha sombra na parede.

Louvado sejas por que eu quero pecar
contra o afinal sítio aprazível dos mortos,
Violar as tumbas com o arranhão das unhas,
Mas vejo a tua cabeça pendida
e escuto o galo cantar
Três vezes em meu socorro.

Louvado sejas, porque a vida é horrível
Porque mais é o tempo que eu passo
Recolhendo os despojos
- velho ao fim de uma gerra como uma cabra -
Mas limpo os olhos e o muco de meu nariz
Por um canteiro de grama.

Louvado sejas por que eu quero morrer, mas tenho medo
E insisto em esperar o prometido

Uma vez quando eu era menino
Abri a porta de noite
A horta estava branca de luar
E acreditei, sem nenhum sofrimento.
Louvado sejas!


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