Um figo que cai

Cartier Bresson - Hyéres 1932 - (O momento em primeiro plano) 

Os figos caem das árvores, são bons e doces: e, ao caírem
rasga-se-lhes a pele rosada. Sou o vento do norte para os figos
maduros

Assim, semelhantes a figos, caem entre vós, amigos meus,
estas doutrinas: bebei o seu sumo e tomai a sua doce polpa!
É outono ao redor, puro é o céu e límpida a tarde.

Nietzsche - Ecce Homo (Prólogo)

Essa passagem me vem a cabeça depois de ler um capítulo de 1Q84, onde a personagem Aomame é convencida a aceitar o pagamento de um serviço. A personagem recusa a recompensa por se tratar de um trabalho espontâneo, fruto de uma vontade pura que habita seu coração, mas sua empregadora insiste, dizendo:

"saiba que um sentimento verdadeiramente puro também possui seus perigos. Não é nada fácil para uma pessoa de carne e osso carregar isso durante a vida. É por isso que você precisa fixar esse sentimento em terra; seria como prender firmemente o balão com uma âncora. E esse dinheiro é para isso. Não podemos fazer qualquer coisa só porque a atitude é correta e o sentimento é puro..." (1Q84 pg. 261)

Queria falar sobre o Satori(iluminação) e selecionei estas passagens para introduzir o que eu ando pensando a respeito da iluminação zen. Começo dizendo que esta revelação é algo que não pode ser ensinado, não é o fruto de uma busca incessante, mas acontece nos momentos mais imprevisíveis. Segundo D T Suzuki, um monge procurava um mestre que lhe pudesse ensinar o caminho da iluminação, mas diante da recusa de todos os mestres, ele decide se isolar e construir uma cabana. Um belo dia, varrendo o chão de sua choupana ele empurra uma pedra que se choca contra um bambu produzindo um estampido que desperta o monge para o Satori.

A pureza não é suficiente.

Isso me inquieta porque geralmente aprendemos que os mistérios devem ser estudados e desvendados e nos acostumamos a nos posicionar diante de um "mestre" como crianças ávidas de conhecimento. Mas o Satori não segue este caminho, o que deixa o discípulo do zen diante de um paradoxo, pois por mais que seja bom que o homem busque o conhecimento do zen e pratique seus ensinamentos, tal disposição, porém, não o levará ao Satori. Aqui percebemos também que apenas uma "ideia pura" não é suficiente para realizar a iluminação, e que o cotidiano e o ordinário são elementos importantes para assentar o espírito no factual. O dinheiro que Aomame deveria aceitar é o koan que o monge deve entoar, é a âncora que prende o espírito ao chão do instante.

Isso também não quer dizer que qualquer um, em determinado momento da vida pode atingir o Satori, pois apenas encontram a iluminação aqueles que a buscam. Neste sentido acredito que estamos duplamente longe de um encontro genuíno com uma iluminação, porque tampouco nos damos conta da importância de se buscar um caminho de espiritualidade. Rapidamente traduzimos este anseio precioso por coisas variadas, como carências disso e daquilo, transformando a experiência religiosa em um tampão de nosso vazio existencial.    

A iluminação como amadurecimento

O Satori é o vento que balança o figo maduro
este cai e rompe sua pele rosada
revelando um conteúdo doce

A iluminação encontra o discípulo nas mais variadas ocasiões, diante da paulada de um mestre, ou de uma torcida de nariz, ou de uma resposta inusitada. No fim, existe um encontro que inaugura uma nova forma de relacionamento do individuo com o mundo, algo que o pensamento lógico não pode explicar, pois para o zen o lógico flutua como um balão solto no ar. O paradoxo é a âncora que firma o ser ao chão.

"Satori é o súbito relâmpago da consciência de uma nova verdade jamais sonhada. É uma espécie de catástrofe mental, ocorrendo num instante, após o empilhamento de materiais intelectuais e demonstrativos. O empilhamento atingiu o limite da estabilidade, todo edifício ruiu até o solo, e então, um novo céu se abre para nós." (Introdução ao zen pg.119)

Abruptamente  percebemos que o fim encerra um novo nascimento e do abismo aberto pelo colapso de nossas estruturas de compreensão do mundo brotam novas sementes, inesperadas. O desmoronamento das certezas é o fim para o indivíduo ocidental, mas amadurecimento para o zen.


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