Ao me dar Você, deu-me Eu

Quando o Le Traître foi por fim publicado, tornei-me consciente de novo do que eu lhe devia: você deu tudo de si para me ajudar a me tornar eu mesmo. A dedicatória que escrevi no seu exemplar diz: “A você, Kay, que, ao me dar Você, deu-me Eu”.
Carta a D. - André Gorz

O universo conhecido tem um amante completo e que é o maior dos poetas. Ele absorve uma paixão eterna e é indiferente a que acaso vem a ocorrer e que possível contingência de ventura ou desventura e persuade dia a dia hora a hora seu delicioso pagamento. O que perturba e choca os outros é o combustível para seu progresso ardente rumo ao contato e à felicidade amorosa. Outras proporções da recepção de prazer ficam menores diante das suas. Tudo que vem dos céus ou das alturas está conectado nele através da visão do amanhecer ou de uma cena dos bosques de inverno ou da presença de crianças brincando ou de seu braço em volta do pescoço de um homem ou de uma mulher. Acima de tudo seu amor tem lazer e expansão.... ele deixa espaço diante de si. Ele não é um amante indeciso ou desconfiado... ele tem certeza... ele rejeita intervalos. Sua experiência e as chuvas e os arrepios não são à toa. Nada o choca.... nem sofrimentos nem as trevas – nem a morte nem o medo. Para ele as lamúrias e o ciúmes e a inveja são cadáveres enterrados e apodrecidos na terra.... ele os viu enterrados. O mar não tem mais certeza da praia ou a praia do mar do que ele tem mais certeza da fruição de seu amor e de toda perfeição e beleza.
Folhas de Relva – Walt Whitman

Essas duas citações são díspares, não possuem vínculo algum. A não ser o amor.

A primeira diz respeito a um relacionamento ímpar entre dois seres que, a despeito de suas peculiaridades e talentos, conseguem concretizar sua existência na interação. O que em outras palavras eu poderia chamar de “um casal que se soma”, mas bem diverso desta qualidade meramente utilitarista que impregna nossas almas, sinto neste relato a manifestação de um Ser vigoroso, superior a esta vivência rarefeita que estamos acostumados. Todos os acontecimentos da vida do autor se relacionam à D. e sua lamentação diante do sofrimento da amada aos poucos vai se transformando em um hino que transfigura a tragédia da doença em um campo infinitamente habitado por pequenas lembranças afáveis. Diante deste amor, todos os elementos se fundem e a morte se torna um mero detalhe.

A segunda citação expressa o amor como um relacionamento secreto com as coisas que suscita uma certeza inabalável. O amor é aqui uma revelação que altera toda percepção da realidade. Vejo o amante a acenar feliz diante do abismo, isso porque em seu interior a vida fez sua morada. Assim, nada mais o surpreende, nem atemoriza, antes, todas as vicissitudes se transformam em combustível para sua busca amorosa, o que torna o amor uma perspectiva que alia nossa vivência à fruição estética.

Amar se torna uma nova forma de relacionamento, pois quando nos doamos em amor abrimos um caminho por onde a vida flui alterando àqueles que amamos, permitindo se tornarem o que de fato são e a nós, ampliando nossas forças pela contemplação daqueles que amamos.

Logo, estas citações têm tudo em comum.

Comentários

  1. Adorei a conexão que você fez de Carta a D. e Folhas de Relva e os desdobramentos. Acho que o limite entre uma relação fértil, em que, justamente por conta da interação, os dois indivíduos tornam-se cada vez mais singulares e melhores do que eram antes do amor, e uma relação em que os amantes se fundem e se afogam é muito tênue. Ou melhor, a diferença entre esses dois tipos de relação é muito grande, mas, na hora mesma em que ela está se dando, no momento do apaixonamento, é difícil distinguir entre formas tão diferentes, mas homônimas no discurso - afinal, tudo recebe o nome de amor.
    Não conseguimos perceber que, do encontro que parecia divino podem brotar infernos que nos consomem e nos achatam... e é tão difícil se desenroscar quando a trepadeira subiu por nossas pernas e já está no pescoço... inclusive porque, no escuro, podemos confudir a jibóia que nos enforca com um abraço amoroso.
    Acho que a vivência do amor genuíno realmente abre mundos como a fruição estética. O desenrolar de um amor genuíno, que é maior que as duas pessoas, nos abre para a contemplação do milagre da vida, nos abre para a tragédia.

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  2. Sempre quis um espaço para reler o amor desgastado. É a única forma de resgate. Queria poder ajudar nesse processo de recuperação do amor textual e real. Permito-me inserir meu blog como referência. Lá existem desamores também como contraponto. Mas mesmo assim esse desamor serve para mostrar a importância de todo oposto. Amor é o pódio do desamor. Sempre se ganha amando.
    http://deletrando.blogspot.com/

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