Olhos nos olhos

Todos já devem ter ouvido falar em “amor a primeira vista” e que os “olhos são a janela da alma”, mas não conseguimos perceber, logo de cara, uma relação entre estes dois ditados. Isso porque remetem a conceitos antigos de como nos formamos e de como nos relacionamos com o mundo, conceitos estes muito avessos a nossa atual maneira de dizer a realidade e talvez por isso expressem melhor o que temos em nossos corações.

“Mas quando perde as suas asas, decai através dos espaços infinitos até se consorciar a um sólido qualquer, e ai estabelece seu pouso.” Fédro

Para Platão a alma é imortal e no seu início compartilhava junto aos deuses da contemplação da Idéia Eterna. Nossa alma é definida no diálogo Fédro como um carro levado por dois cavalos alados, um perfeito, belo, dócil, e outro feio, torto e desobediente. Quando nos dirigimos para a contemplação da Ideia Eterna somos interrompidos pela dificuldade de guiar, instaurando-se uma batalha entre cocheiro e cavalo imperfeito para retomar o caminho, o que nos faz ter uma contemplação parcial, entrecortada, das Idéias. Ao fim, desabamos exaustos, perdemos as asas e iniciamos a jornada terrena na qual podemos buscar as nossas origens (teoria da reminiscência), influenciados pelas lembranças de tal contemplação, ou nos perder em “baixas paixões”.

No momento de nossa queda recebemos dos deuses um invólucro material, que será influenciado pelas condições astrais e ambientais de nossa materialização. Por isso nossa essência possui uma ligação estreita com nossa terra natal, com os elementos que estavam presentes no momento de nossa concepção, advindo daí a concepção do “talismã” como instrumento capaz de nos proteger, pois encerra componentes presentes no dia de nosso nascimento, como plantas, aromas, metais encontrados especificamente naquela época e local.

A peculiaridade de nossa constituição se encontra em nossos olhos, pois sua matéria translúcida permite a nossa alma perscrutar a realidade material, se lançando ao horizonte, extravasando os limites impostos pela corporeidade.

“Assim como alguém que se proponha a sair numa noite tempestuosa prepara um lanterna, flama de fogo brilhando em meio à tempestade, ajustando à sua volta placas transparentes para protegê-la do vento e para cortar as rajadas da ventania, enquanto, através delas, brilha com seus raios infatigáveis o fogo em suas partes mais sutis; assim também, o Amor captou o fogo, embebeu a pupila arredondada, envolvida de membranas delicadas e delicados tecidos que fendem e atravessam o dilúvio circundante, deixando passar o fogo porque este é mais sutil.” Empédocles.

Em nossos olhos se encontra o “limite entre materialidade e espiritualidade”( Janela da alma.), tornando este órgão uma parte privilegiada de nosso relacionamento com a exterioridade.
Nossa alma possui esta qualidade sutil, por isso se “lança” a semelhança da luz de um farol sobre nosso entorno, captando a realidade, mas o que acontece quando este encontra um outro olhar, mais especificamente o olhar do amado?

“Do mesmo modo que um zéfiro ou que um som refletido por um corpo sólido e polido, também as emanações da beleza, entrando pelos olhos através dos quais – como lhe é natural – atingem a alma, volta esta ao belo, estende as asas e, molhando-as, as torna capazes de gerar novas asas, inundando também de amor a alma do amado... no espelho do amante, viu-se a si mesmo sem dar por isso.” Fédro.

Quando contemplamos o olhar do amado temos contato com algo que nos é singular, a Beleza ou Idéia Verdadeira, da qual nós não nos lembrávamos com clareza, mas que se torna, agora, abruptamente nítido. Bem parecido com aqueles momentos em que tentamos lembrar uma palavra, mas esta nos foge até que a tenhamos diante dos olhos, o encontro de olhares que ocorre no “amor a primeira vista” é o momento em que a alma se reencontra com a origem esquecida no percurso da queda original.

No diálogo Fédro, Sócrates ainda descreverá os caminhos que poderão ser trilhados pelos enamorados, tendo em vista as tendências contraditórias que envolvem o encontro amoroso, a semelhança do conflito cocheiro-cavalo do mito acima descrito, em todo o percurso persistirá uma tensão entre impulso e temperança, mas esta situação ainda é mais positiva do que aqueles que não encontram o “amor com paixão”, que serão, segundo Sócrates, condenados a “vagar na terra por nove mil anos”. (Não basta nunca ter amado de verdade, ainda tem que se lascar vagando pela terra por milênios!..rs)

-Janela da alma, espelho do mundo - Marilena Chauí
-Fédro - Platão

Comentários

  1. Muito bom!! Vou te passar o "MAPA da Ternura". Literalmente um mapa, que mostra os caminhos da conquista, baseado em 3 tipos possíveis de amor. Era bem conhecido na França do século XVII, e o que me fez lembrar dele foi o caso do amor à primeira vista, conhecido como "ternura por inclinação". Para alcançar os outros dois, "por reconhecimento" e "por estima" é preciso percorrer, partindo da cidade de "Amizade Recente", vales, cidades, bosques, chamados cartas amorosas, carinho, atenção, confiança etc. Já para o primeiro caso basta seguir desenfreado um rio chamado Inclinação para se chegar rapidamente ao "Amor por Inclinação" e mais nenhum artifício, sem qualquer percalço. Escrevi demais?

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