Pois é

"Casar-se significa abdicar de metade dos direitos e duplicar os deveres. Casar-se significa fazer o possível para sentir repugnância um do outro. Casamentos felizes são notoriamente raros." - Arthur Schopenhauer, em a Arte de Insultar

Dado que um encontro amoroso verdadeiro é raro, os casamentos deveriam ser raros também, mas, ao contrário, abundam. O que acontece, na maior parte das vezes, é que os amantes enclausuram-se num monólogo de fantasias. O outro é apenas suporte da fantasia, que é o que verdadeiramente amamos. E, como suporte, precisa estar aprisionado para garantir a perpetuação da ilusão. Se fugir, cairei em desengano, perderei o sonho em torno do qual havia organizado a minha vida e ficarei vazio, com toda a dor que isso implica.

Na medida em que o outro se revela desencaixado de nosso ideal, vale dizer, como um suporte pouco eficiente, nos frustramos, cobramos insistentemente: "você não me corresponde!", "no começo não era assim!", infinitas ladainhas. O culpado de nosso sofrimento é o outro - daí a repugnância. Repugnância porque, sem suporte, nossos ideais não têm mais onde encarnar. Repugnância porque o desvelamento é uma castração: não podemos mais fazer parte do todo que acreditávamos formar com o amante. Mas não há e nunca houve fusão. A solda era delírio. Perdemos o que, na verdade, nunca tivemos, já que o outro sempre foi outro e coincidiu com a fantasia porque foi recoberto com o véu do amor-paixão.

"A cegueira é o destino de quem se deixa tomar pela paixão: deixamos de ver quem amamos. Em vez disso, o apaixonado fita o abismo de si mesmo", Mia Couto, em Antes de Nascer o Mundo

Talvez o trabalho árduo envolvido em relações repetidamente fracassadas (aliás, ainda bem que podem fracassar as relações em que um se escora no outro e, portanto, são pedaços de gente se acoplando a outros pedaços de gente. O perigo é perdurarem dessa forma eternamente) seja o de desinflar a fantasia, apropriar-se da ferida-fantasia que terceirizamos, calar o monólogo, desiludir-se para tocar o outro, ouvir o outro. Só assim a possibilidade de uma relação com outra pessoa (que é e continuará diferente de nós e livre), de fato, se constitue. Enfim, o desafio é abrir-se para o desconhecido, para o devir imprevisível do outro e da relação, que também tem um caminhar próprio, sem fixação nos pressupostos, que, inevitavelmente, nos habitam. Esse processo de compreensão, que envolve queda da fantasia de que o outro vai me preencher (e, quanto maior ela for, maior o sofrimento) é dilacerante. É a expulsão do paraíso, de novo e de novo e de novo.

Amor-Paixão

Separar do amor
a alucinada imagem
distinguindo o que é deserto
do que é miragem
- quem há-de?

Difícil é separar o raio
do trovão.
Em certas horas do dia
se está na luz e escuridão.

Apartar os dedos da mão
- quem é tal cirurgião?
Esta a ilusão de Caim
ao matar o próprio irmão.

Separar a parte sã
da doentia parte
quem no amor-paixão
teria tal perícia e arte?

(Affonso Romano de Sant'Anna, em Vestígios)

Comentários

  1. As vezes não encontramos no amor algo novo porque tentamos separar das coisas tudo que nos agrada. Somos mornos em nossos relacionamentos para mantermos tudo separado...quando somente as altas temperaturas tornam a matéria frágil do barro uma nova estrutura, inquebrantável e irreversível.

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  2. Amar é ter a capacidade de amar o Outro e não a si mesmo neste espelhado. Se for verdade a idéia de que o casal é um só ser, será então um terceiro, formado pelas semelhanças e diferenças, tréguas e conflitos.
    Eu e minha esposa tivemos a sorte de rarear... rs.

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