O amor é truculência.

Depois de cunhar a expressão “vegetariano não praticante” comecei a refletir sobre o vegetarianismo(é assim que se escreve?), pensando nas críticas ao manejo de animais para o abate e no nosso distanciamento, enquanto consumidores, dos seres que participam de nossa dieta. Eu acredito que nosso distanciamento do momento do sacrifício nos coloca em uma posição artificial frente a nossas necessidades mais básicas, comprometendo nossa relação com os animais que consumimos e com a vida que deles tiramos. Nossa aversão ao sacrifício, à morte, ao sangue, se relaciona ao fato de não nos interessarmos pelos bois que pastam tranquilamente em alguma fazenda perdida no interior do país, ou mesmo aqueles bezerros que passam todo o tempo em cativeiro apenas engordando para produzirem bifes mais macios e suculentos. Quando a morte deixa nosso horizonte, a maneira como valorizamos e sentimos nossas vidas se amortece, vigorando uma espécie de astenia moral que repudia os meios, acolhendo os fins. Alcançamos uma espécie de niilismo alimentar quando nos tornamos “vegetarianos não praticantes”.

Nossa Truculência
Quando penso na alegria voraz com que comemos galinha ao molho pardo, dou-me conta de nossa truculência. Eu, que seria incapaz de matar uma galinha, tanto gosto delas vivas mexendo o pescoço feio e procurando minhocas. Deveríamos não comê-la e ao seu sangue? Nunca. Nós somos canibais, é preciso não esquecer. É respeitar a violência que temos. E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo, comeríamos gente com seu sangue. Minha falta de coragem de comer uma galinha e no entanto comê-la morta me confunde, espanta-me, mas aceito. A nossa vida é truculenta: nasce-se com sangue e com sangue corta-se a união que é o cordão umbilical. E quantos morrem com sangue. É preciso acreditar no sangue como parte da nossa vida. A truculência. É amor também.
Clarice Lispector, 13 de dezembro, 1969 - A Descoberta do Mundo

Defendo aqui esse "respeito pela violência", não a sua simples supressão, pois acredito que os absurdos no manejo dos animais ocorrem como sintomas do distanciamento que tomamos de nossa própria vida, quando asceticamente rejeitamos o que dela não nos soa agradável e pacífico. Não espero que saiamos à caça de nossa própria refeição, mas deveríamos contemplar o sacrifício com mais reverência. Afinal, nada foi mais sagrado que o sangue derramado, aparecendo nas várias religiões(alguém já se perguntou por que Jesus teve que morrer na cruz, por que Deus simplesmente não nos perdoou!?)como um símbolo de nossa própria mortalidade, de nossa dependência dos seres e do mundo que nos cerca.

E o amor, o que tem a ver com isso tudo? Imaginemo-nos numa floresta, perdidos, nós e nosso cordeiro de estimação. Ele comendo a grama, tranquilamente, enquanto passamos fome. Bom, depois de sacar uma faca bem afiada, chamamos o bichinho que se dirige à nós saltitante, com um brilho no olhar. Nós o abraçamos sentindo o macio de seus pelos e o acariciamos enquanto firmemente o degolamos. Não sei se teríamos coragem para praticar tal ato, mas com certeza não deixaríamos de amar nosso cordeiro, nem no momento crítico da morte, nem seriamos reprovados por comer sua carne. Após sermos saciados de nossa fome e encontrarmos a saída da floresta, como seria nosso sentimento com relação aos seres que coexistem conosco? Depois de contemplarmos o sangue correr por nossas mãos, o sofrimento, os espasmos e a morte de um ser que compartilhava prazerosamente de nossa presença, será que conseguiríamos não amá-los?
Ou me pergunto se o que nós sentimos com relação a este exemplo se compara com o que sentimos em relação aos animais anônimos que devoramos todos os dias?(Este exemplo me vem a cabeça depois de lembrar do Homer Simpson comendo a sua lagosta de estimação!kkkkk)

Eu sei, este é um exemplo extremo, afinal podemos amar os animais sem devorá-los. Nem quero condenar os vegetarianos, afinal se trata apenas de uma dieta, entre outras, assim como existe a crueldade pura. Quero apenas apontar o fato de que amor e sangue me parecem elementos correlatos, não excludentes, e que nossa aversão à morte aponta para uma desvalorização da própria vida. Paralelamente fugimos da solidão abraçando todos os tipos possíveis de relacionamentos, sem notar que essa fuga está diretamente ligada a nossa incapacidade de encontrar o amor, o que doravante tentarei expor em um outro post.

Comentários

  1. Muito bom!!
    Sacrifício, aversão à morte, desvalorização da vida... boas coisas para se pensar a respeito.
    E não se preocupe com o exemplo. Sempre acreditei que os exemplos extremos são os mais eficazes.
    Para algumas pessoas soa absurdo, imagino, por obrigá-las "truculentamente" a refletir sobre algo que não querem.

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  2. Amor é sacrifício!
    Seguindo o exemplo da cruz
    ..."Deus amou o mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna."
    E o próprio filho mencionado se ofereceu em sacrifício por amor.

    Quando um filho nasce, os pais sacrificam sua vida anterior em prol deste novo ser.

    Como já foi comentado neste blog, um casal surge do sacrifício de dois seres diferentes.

    Só quem você ama pode te fazer sofrer.

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  3. é meu amigo.. a ideia de sacrifício está obsoleta, ultrapassada. Só não nos apercebemos das coisas que com ela deixamos para trás.

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